"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/05/2024

Jurisprudência 2023 (168)


"Factos conclusivos";
delimitação; thema decidendum*

I. O sumário de RP 25/9/2023 (13265/18.2T8PRT-A.P1) é o seguinte:

I - Na vigência do Código de Processo Civil anterior, mas igualmente após 01/09/2013, ocasião em que passou a vigorar a Lei 41/2003, de 26 de junho (NCPC) a matéria de facto à qual há que aplicar o direito tem de cingir-se a verdadeiros factos e não a questões de direito ou a meros juízos conclusivos, razão pela qual a revogação do artigo 646, n.º 4 do anterior CPC, não significa que o princípio nele estabelecido haja sido alterado devendo, assim, eliminar-se da fundamentação factual os pontos que neles se contenham meras conclusões.

II - Do regime legal de citação decorre: a)- ser equiparada à citação pessoal a efetuada em pessoa diversa do citando, encarregada de lhe transmitir o conteúdo do ato; b)- que, em tal situação presume-se, salvo prova em contrário, ter tido o citando oportuno conhecimento do conteúdo da mesma; c) que no caso de citação de pessoa singular, através de carta registada com aviso de receção, esta pode ser entregue a qualquer pessoa (terceiro) que se encontre na residência ou local de trabalho do citando, desde que declare encontrar-se em condições de lha entregar prontamente; d)- nesta situação, a citação considera-se efetuada na própria pessoa do citando, presumindo-se, salvo demonstração em contrário, que a carta de citação foi oportunamente entregue àquele.

III - A presunção de entrega ao destinatário, de natureza ilidível, prevista no n.º 1 do artigo 238.º do (presentemente, artº. 230.º) e no nº. 4, do artº. 233º (presentemente 225.º), ambos do CPCivil de 1961 (na redação à data vigente), apenas funciona caso se cumpram todos os pressupostos de tal entrega, nomeadamente, e no que ora importa, a sua feitura ou ocorrência, no lugar próprio (residência ou local de trabalho), legalmente enunciado.

IV - Todavia, não sendo operatória tal presunção, caso em que a carta foi recebida por terceiro, em local que já não correspondia à sua residência (nem local de trabalho), não se pode considerar que o citando tenha ficado onerado com qualquer ónus, nomeadamente o prescrito na alínea e), do artº. 195.º (presentemente, artº. 188.º), do Cód. de Processo Civil (na redação à data vigente).

V - Os poderes de representação “perante a justiça portuguesa em geral” constantes de procuração não contemplam o poder de receber citações.

VI - Estando controvertido que o citando não residia no local para onde foi expedida a carta para citação, nem esse era o seu local de trabalho, foi prematuro o conhecimento de mérito no despacho saneador dos embargos deduzidos que apenas deve ter lugar quando o processo fornecer, já em tal fase processual, todos os elementos de facto necessários à decisão do caso segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Como supra se referiu a primeira questão que importa apreciar e decidir consiste em:

a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.

Como resulta do corpo alegatório e das respetivas conclusões o apelante abrange, com o recurso interposto, a impugnam a decisão da matéria de facto, não concordando com a resenha dos factos provados.

Vejamos, então, se lhe assiste razão.

O controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialeticamente na base da imediação e da oralidade.

Efetivamente, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º nº 5) que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente impercetível na gravação/transcrição. [---]

Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objeto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objetivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.

O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado”. [Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 348.]

De facto, a lei determina expressamente a exigência de objetivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4 do CPCivil).

Todavia, na reapreciação dos meios de prova, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância. [Cfr. acórdãos do STJ de 19/10/2004, CJ, STJ, Ano XII, tomo III, pág. 72; de 22/2/2011, CJ, STJ, Ano XIX, tomo I, pág. 76; e de 24/9/2013, processo n.º 1965/04.9TBSTB.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt.]

Impõe-se-lhe, assim, que “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada”. [Cfr. Ac. do S.T.J. de 3/11/2009, processo n.º 3931/03.2TVPRT.S1, disponível em www.dgsi.pt.]

Importa, porém, não esquecer porque, como atrás se referiu, se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados. [Ac. Rel. Porto de 19 de setembro de 2000, CJ XXV, 4, 186; Ac. Rel. Porto 12 de Dezembro de 2002, Proc. 0230722, www.dgsi.pt]

Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora se assiste razão ao embargante/apelante neste segmento recursivo da impugnação da matéria de facto, nos termos por ele pretendidos.

Impugna, desde logo o recorrente o ponto 2. dos factos provados, alegando que o mesmo encerra matéria conclusiva.

Este ponto tem a seguinte redação:

Nesses autos a exequente figurou como Autora e o Réu como executados, tendo este último sido citado, na pessoa de BB, por carta registada com aviso de receção, na data de 20.01.2009, na morada constante do contrato em crise na ação declarativa, Rua ..., ..., Matosinhos (cfr. aviso de receção junto aos autos)”.

Tem, de facto, razão o apelante.

Na verdade, sendo a validade da citação o thema decidendum e fundamento dos embargos deduzidos, torna-se evidente que a redação do citado ponto não pode subsistir com aquele conteúdo já que, contém ele próprio, a resposta à questão jurídica colocada.

Importa não esquecer que o artigo 607.º, nº 4 do CPCivil [---] dispõe que na fundamentação da sentença, o juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.

No âmbito do anterior regime do Código de Processo Civil, o artigo 646.º, nº 4 do CPCivil, previa, ainda, que: têm-se por não escritas as respostas do tribunal coletivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documento, quer por acordo ou confissão das partes”.

Esta norma não transitou para o atual diploma, o que não significa que na elaboração da sentença o juiz deva atender às conclusões ou meras afirmações de direito.

Ao juiz apenas é atribuída competência para a livre apreciação da prova dos factos da causa e para se pronunciar sobre factos que só possam ser provados por documento ou estejam plenamente provados por documento, admissão ou confissão.

Compete ao juiz singular determinar, interpretar e aplicar a norma jurídica (artigo 607.º, nº 3 do CPCivil) e pronunciar-se sobre a prova dos factos admitidos, confessados ou documentalmente provados (artigo 607.º, nº 4).

Às conclusões de direito são assimiladas, por analogia, as conclusões de facto, ou seja, “os juízos de valor, em si não jurídicos, emitidos a partir dos factos provados e exprimindo, designadamente, as relações de compatibilidade que entre eles se estabelecem, de acordo com as regras da experiência“ [José Lebre de Freitas e A. Montalvão Machado, Rui pinto Código de Processo Civil–Anotado, Vol. II, Coimbra Editora, pág. 606.].

Antunes Varela considerava que deve ser dado o mesmo tratamento “às respostas do coletivo, que, incidindo embora sobre questões de facto, constituam em si mesmas verdadeiras proposições de direito“ [Antunes Varela, J. M. Bezerra, Sampaio Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição Revista e Atualizada de acordo com o DL 242/85, S/L, Coimbra Editora, Lda., 1985, pag. 648.].

Em qualquer das circunstâncias apontadas, confirmando-se que, em concreto, determinada expressão tem natureza conclusiva ou é de qualificar como pura matéria de direito, deve continuar a considerar-se não escrita porque o julgamento incide sobre factos concretos.

Diante do exposto altera-se a redação do citado ponto factual pela seguinte forma:

Nesses autos, a Exequente figurou como Autora e o Executado como Réu, tendo o Juízo Local de Matosinhos remetido a carta de citação dirigida ao então réu por correio registado com aviso de receção, endereçada para a Rua ..., ... Matosinhos, a qual foi recebida em 20/03/2009 por BB, conforme aviso de receção junto aos autos que aqui se dá por integralmente reproduzido”.


*3. [Comentário] a) O acórdão debate-se com o problema dos "factos conclusivos". No caso concreto, a RP não aceita, porque conclusivo, o ponto 2. dos factos provados, assim redigido:

Nesses autos a exequente figurou como Autora e o Réu como executados, tendo este último sido citado, na pessoa de BB, por carta registada com aviso de receção, na data de 20.01.2009, na morada constante do contrato em crise na ação declarativa, Rua ..., ..., Matosinhos (cfr. aviso de receção junto aos autos)”.

O argumento invocado pela Relação é o de que a validade da citação constitui o thema decidendum. Nesta parte, há que concordar com a RP: só podem ser considerados provados factos que respeitem à previsão de uma regra jurídica, ainda que -- supõe-se que ao contrário do entendimento da RP -- esses factos sejam factos jurídicos, isto é, sejam "factos conclusivos". Consequências ou efeitos jurídicos não podem ser considerados provados.

b) Como se tem vindo a tornar comum em acórdãos que rejeitam os chamados "factos conclusivos", a RP afirma o seguinte:

"No âmbito do anterior regime do Código de Processo Civil, o artigo 646.º, nº 4 do CPCivil, previa, ainda, que: têm-se por não escritas as respostas do tribunal coletivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documento, quer por acordo ou confissão das partes”.

Esta norma não transitou para o atual diploma, o que não significa que na elaboração da sentença o juiz deva atender às conclusões ou meras afirmações de direito."

Neste ponto, já não se pode acompanhar a RP. O que cabe perguntar é o seguinte: por que motivo, em vez de procurar "ressuscitar" uma regra que foi revogada, não se trabalha com o regime que está efectivamente em vigor?

c) Sobre a problemática relativa aos factos conclusivos, cf. MTS, CPC online, Art. 410.º a 422.º (vs. 2024.04), Art. 410.º, 10 ss.

MTS


10/05/2024

Jurisprudência 2023 (167)


Processo de inventário;
âmbito de aplicação; divisão de coisa comum*


1. O sumário de RE 28/9/2023 (611/21.0T8SSB.E1) é o seguinte:

I – Após a dissolução conjugal, por regra, há lugar a inventário (exceção feita se o regime de bens for o da separação de bens – art.º 1 404.º, n.º 1, in fine) e não já a ação de divisão de coisa comum.

II – É em face do quadro factual apurado que importa indagar se assiste direito ao apelante a intentar a ação de divisão de coisa comum com vista à dissolução da compropriedade ou se deve intentar um processo de inventário para cessar a contitularidade de um imóvel cuja data de aquisição é anterior ao casamento.

III – No caso concreto, está em causa a aquisição de um imóvel, com recurso a empréstimo bancário, anteriormente ao casamento, entretanto dissolvido por divórcio, e que ao pagamento do mesmo foram afetos outros bens comuns do casal, existindo, ainda, outros bens adquiridos na constância do matrimónio, conforme se extrai das peças processuais impetradas nos autos por apelante e apelada.

IV – Por outro lado, na constância do casamento foram sendo pagas as prestações do empréstimo ao BPI, SA.

V – Por fim, tendo por acordo entre as partes sido atribuído o imóvel aludido como casa de morada da família à apelada até à venda ou partilha, tem de concluir-se que o imóvel em causa não podia ser objeto de divisão (entenda-se litigiosa) senão nos termos do processo de inventário para partilha de bens comuns do casal na sequência da sentença do divórcio, ou através de meio próprio, após este processo de inventário.

VI – É que havendo bens em compropriedade do casal, quer por aquisição anterior, quer por aquisição posterior ao casamento e pretendendo em caso de divórcio qualquer dos cônjuges fazer a divisão daqueles bens, parece ser de admitir a possibilidade de uma única ação de inventário a correr por apenso ao processo de divórcio, nos termos do art.º 1 404.º, do Código de Processo Civil, onde se proceda à divisão ou partilha de todos os bens.


2. No Relatório e na fundamentação escreveu-se o seguinte:

"I – RELATÓRIO

1.1. AA intentou ação especial de divisão de coisa comum contra BB, alegando, em suma que casou com a ré no dia 05 de abril de 2013, no regime da comunhão de adquiridos; que no dia 05 de setembro de 2007 adquiriram a fração “D”, correspondente ao primeiro andar esquerdo do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, destinado habitação sito Rua …, para constituir a casa de morada de família, uma vez que estabeleciam uma relação afetiva, mas não eram casados à data; que o casamento com a ré foi dissolvido por sentença datada de 24 de outubro de 2019; que a supra referida fração é indivisível, não podendo ser constituídas duas frações autónomas e ambos não se entendem quanto à utilização da casa.

Conclui pedindo que se ponha termo à indivisão do referido imóvel. [...]

1.4. No dia 28 de abril de 2023, foi proferida a seguinte decisão:

O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da hierarquia e da matéria.

Erro da Forma do Processo.

Correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo de Família e Menores, Juiz 3, o processo n.º 6171/19.5T8STB, onde foi alcançado acordo entre o Autor e a Ré, convolando o divórcio para mútuo consentimento, acordando ainda, especificamente, em atribuir à Autora o direito de utilização da casa de morada de família até à venda ou partilha.

Compulsados os autos resulta que os bens comuns do ex-casal ainda não se mostram partilhados através de escritura pública de partilha ou mediante ação especial de inventário.

A divisão de coisa comum é posterior à partilha, caso o imóvel em compropriedade não tenha sido atribuído a um dos ex-cônjuges com a tornas pelo outro.

O património conjugal constitui uma propriedade coletiva que pertence em comum aos cônjuges mas sem se repartir entre eles por quotas ideais, como acontece na compropriedade.

Após a dissolução conjugal, há lugar a inventário, exceção feita se o regime de bens for o da separação de bens, que não é o caso concreto, pois os ex-cônjuges casaram em comunhão de bens adquiridos, e não a ação de divisão de coisa comum – neste sentido acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15.07.2020., in www.dgsi.pt

O que sucede mesmo que o divórcio tenha sido por mútuo consentimento, quer no judicialmente quer na conservatória do registo civil.

Ocorre erro na forma do processo, sendo que a presente forma especial de divisão de coisa comum não é aproveitável para a ação especial de inventário, nem o presente tribunal seria competente.

Pelo exposto, decido absolver da instância a ré, BB, pela verificação de erro na forma do processo que anula todo o processado – artigo 193.º do CPC. [...]

II – FUNDAMENTAÇÃO

2.3. Apreciação do recurso

O direito de exigir a divisão de coisa comum está previsto no art.º 1 412.º, n.º 1, do Código Civil, segundo o qual “nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão, salvo quando se houver convencionado que a coisa se conserve indivisa”.

O direito potestativo de que trata o art.º 1 412.°, do Código Civil, é, na sua essência, um direito de dissolução da compropriedade, que normalmente se opera mediante a divisão em substância da coisa, mas que também pode realizar-se através da partilha do seu valor ou preço.

Há, porém, muitos atos conducentes à cessação da comunhão que nada têm a ver com o direito potestativo aqui regulado, uma vez que a comunhão pode cessar, através dos vários negócios entre vivos ou mortis causa, ou até da usucapião, capazes de concentrarem a propriedade da coisa comum numa só pessoa, que tanto pode ser um dos dois ou mais comproprietários, como um terceiro.

O direito a que alude o art.º 1 412.°, citado, distingue-se, todavia, das outras formas de dissolução da comunhão ou compropriedade, pelo facto de se dirigir contra todos os consortes e ter como fim prático a cessação da compropriedade, e não apenas a determinação da quota do consorte na coisa comum [P. Lima/A. Varela, Código Civil anotado, III, 2.ª ed, p. 386-387.

A divisão da coisa comum pode ser feita amigavelmente ou nos termos da lei do processo (art.º 1 413.º, do Código Civil).

O Código de Processo Civil, no art.º 1 052.º, n.º 1, que “todo aquele que pretenda pôr termo à indivisão da coisa comum requererá, no confronto dos demais consortes, que, fixadas as respectivas quotas, se proceda à divisão em substância da coisa comum ou à adjudicação ou venda desta, com repartição do respectivo valor, quando a considere indivisível, indicando logo as provas”.

Coloca-se na presente ação e recurso, como essencial, a questão de saber se o autor, ora apelante, tem direito a pôr termo à indivisão da fração autónoma de que é comproprietário com a ré, ora apelada, invocando o primeiro que o imóvel em causa foi adquirido por ele e pela ré no estado civil de solteiros, não integrando, assim, o património conjugal.

Ora, vejamos, antes de mais, os factos:

O apelante e a apelada casaram um com o outro em 05 de abril de 2013, no regime de comunhão de adquiridos, sendo que antes do casamento, adquiriram, por meio de empréstimo, fração identificada em 1. que foi a casa de morada de família do casal e que foi atribuída à ré na sequência do divórcio homologado por sentença proferida em 24 de outubro de 2019.

Na constância do casamento e já após o divórcio, foram sendo pagas as prestações do empréstimo ao BPI, SA.

É em face deste quadro factual que importa indagar se assistia direito ao apelante a intentar a presente ação de divisão de coisa comum com vista à dissolução da compropriedade ou se deveria ter intentado um processo de inventário para cessar a contitularidade do imóvel em causa.

Antes de mais, há tomar na devida conta que a “compropriedade” ou “contitularidade” que está em causa nos autos não é entre dois estranhos indivíduos, mas sim entre marido e mulher, casados em comunhão de adquiridos e que possuem em comum não só o imóvel dos autos adquirido antes do casamento, como outros bens adquiridos na constância do matrimónio, conforme se extrai das peças processuais impetradas nos autos por apelante e apelada.

Veja-se, até, que é o próprio apelante que se opõe à admissibilidade da reconvenção alegando que:

O pedido reconvencional efetuado pela Ré, fundamentado no pagamento de valores alegadamente efetuados por si efetuados e referentes a prestações de crédito automóvel, à sua contribuição para o Plano Poupança Reforma, às prestações do crédito habitação e respectivos seguros do imóvel cuja divisão se peticiona, quotizações de condomínio e outras decorrentes da vida em comum havida entre as partes, com vista ao reconhecimento desse crédito sobre o Autor a ser efetivado/compensado aquando da adjudicação ou venda do imóvel, não é admissível à míngua da não verificação de qualquer requisito substancial de conexão (…); e que:

De igual modo, não poderá ser aqui apreciada qualquer divisão de créditos futuros relativos aos empréstimos bancários em vigor, os quais não são adequados à presente forma de Ação especial.”.

O que indicia que existem outros bens, sejam eles ativos ou passivos, a partilhar.

Por outro lado, na constância do casamento e já após o divórcio, foram sendo pagas as prestações do empréstimo ao BPI, SA.

Ora, outros bens, igualmente comuns, foram afetos ao pagamento das prestações do empréstimo relativo à aquisição da fração em causa.

Por fim, mas não menos importante, tendo por acordo entre as partes sido atribuído o imóvel aludido como casa de morada da família à apelada até à venda ou partilha, tem de concluir-se que o imóvel em causa não podia ser objeto de divisão (entenda-se litigiosa) senão nos termos do processo de inventário para partilha de bens comuns do casal na sequência da sentença do divórcio, ou através de meio próprio, após este processo de inventário.

É que havendo bens em compropriedade do casal, quer por aquisição anterior quer por aquisição posterior ao casamento e pretendendo em caso de divórcio qualquer dos cônjuges fazer a divisão daqueles bens, parece ser de admitir a possibilidade de uma única ação de inventário a correr por apenso ao processo de divórcio, nos termos do art.º 1 404.º, do Código de Processo Civil, onde se proceda à divisão ou partilha de todos os bens.

Só não poderá haver lugar a este inventário, com tal abrangência, se o regime de bens do casamento for de separação (art.º 1 404.º, n.º 1, in fine), sendo que neste caso, se houver bens em compropriedade, é que terá de recorrer-se a ação de divisão de coisa comum [este sentido Lopes Cardoso, in Partilhas Judiciais, III, 3.ª ed., p. 346 e Abel Pereira Delgado, in O Divórcio, 1980, p. 101.].

Daí que quando no processo de divórcio as partes acordaram “O direito de utilização da casa de morada de família é atribuído à autora até venda ou partilha” (cfr. documento junto com a contestação da ré/apelada), as partes só poderiam ter em mente que o acordo firmado era para durar até à partilha dos bens do casal efetuada em inventário na sequência do divórcio ou até a uma eventual venda do imóvel feito por acordo das partes ou de forma litigiosa na âmbito do mesmo inventário.

Não no âmbito de qualquer ação de divisão de coisa comum que, em princípio, não poderia ter lugar.

Fácil será de entender que um declaratário normal, colocado na situação da apelada enquanto requerente da atribuição da morada da casa de família, não aceitaria um acordo no sentido de aquela atribuição lhe ser feita apenas até à venda que viesse a ser realizada no âmbito de qualquer ação de divisão de coisa comum, que no dia seguinte ao acordo o apelante lhe pudesse mover.

Perante o acordo firmado pelo apelante e pela apelada quanto à atribuição do imóvel dos autos como casa de morada de família para a segunda só podia ter o significado de o destino do imóvel ser o do acordo concertado até que entre as partes fosse feita a partilha e eventual venda dos bens.

Tanto mais quanto decorre do processo, designadamente dos documentos juntos com a contestação, que existem outros bens e dívidas (cfr. documentos não impugnados pelo autor/apelante) a partilhar.

Diga-se, ainda, que o douto acórdão do STJ invocado pelo apelante nas suas doutas motivações de recurso não têm paralelismo, o com o presente caso, ou pelo menos na sua totalidade.

Veja-se que ali se escreveu:

Não pode confundir-se esta situação com aquela que estava subjacente ao Ac. da Rel. de Lisboa, de 1-6-10, nº 2104/09.5TBVFX-A.L1, relatado pelo ora relator e sendo adjunto também o ora primeiro adjunto, pois a tal aresto estava subjacente uma dívida perante terceiros que era da responsabilidade de ambos os cônjuges, tendo então sido considerado adequado o aproveitamento do processo de inventário para regular os interesses que eram comuns a ambos os cônjuges.

Assumiu-se então que, embora não existam bens comuns a partilhar (ativo patrimonial), o processo de inventário pode integrar a regulação de outros efeitos patrimoniais do divórcio, desde que se trate de aspetos em que ambos os cônjuges estão envolvidos, por corresponderem designadamente a dívidas que ambos assumiram ou de que ambos são responsáveis.(…)”

Ou seja, naquele caso, inexistem bens comuns a partilhar, o que não é o caso, como resulta dos autos, em que existem bens e dívidas.

Neste conspecto, e subscrevendo a decisão recorrida, julga-se improcedente a apelação."


*III. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, não se pode acompanhar o decidido pela RE.

Na anterior acção de divórcio, os agora ex-cônjuges acordaram que “O direito de utilização da casa de morada de família é atribuído à autora até venda ou partilha”. Disto não resulta necessariamente que, quanto à "partilha", o direito de utilização da casa de morada de família termina necessariamente no momento dessa "partilha". A declaração também pode ter o sentido de que, depois de realizada a "partilha" dos bens que houver a partilhar entre os ex-conjuges, o destino da casa de morada de família tem de ser objecto de novo acordo ou de qualquer outra solução.

No entanto, o argumento incontornável que pode ser invocado contra a orientação da RE é o de que não é certamente uma disposição negocial que pode alterar o âmbito de aplicação das formas do processo. Portanto, não é por as partes referirem a "partilha" de um bem em compropriedade que a forma de processo adequada passa a ser o inventário, dado que, quanto a ex-cônjuges, este processo só pode ser aplicado "para partilha dos bens comuns" (art. 1133.º, n.º 1, CPC).

b) A RE afirma o seguinte:

"Só não poderá haver lugar a este inventário, com tal abrangência, se o regime de bens do casamento for de separação (art.º 1 404.º, n.º 1, in fine), sendo que neste caso, se houver bens em compropriedade, é que terá de recorrer-se a ação de divisão de coisa comum."

É verdade que, se o regime for de separação e houver bens em situação de compropriedade, "terá de recorrer-se à acção de divisão de coisa comum". O que falta concluir é que, mesmo que o regime seja de comunhão e houver bens em situação de compropriedade, também terá de recorrer-se à acção de divisão de coisa comum para a divisão desta compropriedade. O âmbito de aplicação da acção de divisão de coisa comum define-se em função de uma situação de compropriedade, sendo totalmente irrelevante não só se os comproprietários são casados entre si, mas também se o são no regime de separação ou no de comunhão de bens.

MTS


09/05/2024

Bibliografia (1125)


-- Anelli Franco / Briguglio Antonio / Chizzini Augusto / De Poli Matteo / Gragnoli Enrico / Orlandi Mauro / Tosi Loris, L'onere della prova / Diritto processuale civile, internazionale privato e amministrativo - Diritto civile - Diritto societario e finanziario - Diritto del lavoro - Diritto Tributário (Wolters Kluwer / CEDAM: 2024)


Jurisprudência 2023 (166)


Transacção judicial; homologação;
efeitos; caso julgado*


1. O sumário de RG 28/9/2023 (753/20.0T8VNF-J.G2) é o seguinte:

I – A força obrigatória da sentença transitada em julgado desdobra-se num duplo sentido: a um tempo, no da proibição de repetição da mesma pretensão ou questão, por via da exceção dilatória do caso julgado; a outro, no da vinculação das partes e do tribunal a uma decisão anterior, o que corresponde à denominada autoridade do caso julgado.

II – A questão da autoridade do caso julgado material respeita, sobretudo, à extensão da auctoritas rei iudicatae à solução das questões prejudiciais, assim denominadas as relativas a relações jurídicas distintas da deduzida em juízo pelo autor, mas de cuja existência ou inexistência dependa logicamente o teor da decisão do pedido, sobre as quais não ocorre decisão, mas simples cognitio.

III – A autoridade do caso julgado não prescinde da identidade de partes, o que é consequência dos princípios da proibição da indefesa e do contraditório.

IV – A sentença homologatória da transação não tem um conteúdo especificamente jurisdicional ou decisório sobre o objeto, já que são as partes quem dispõe da situação e escolhem a solução a dar ao litígio.

V – Como tal, quando estejam em causa os efeitos da transação em subsequente ação, é mais correto falar-se numa exceção atípica de transação, a qual desempenha função semelhante à do caso julgado.

VI – Tal exceção apenas pode ser invocada perante quem foi parte na transação, o que é uma consequência do princípio da eficácia relativa dos contratos (art. 406/2 do Código Civil), sem prejuízo das situações excecionais em que o contrato acaba por produzir efeitos, negativos ou positivos, junto de determinados terceiros.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"[...] a transação judicial, que constitui a base para o proferimento da sentença homologatória, que é, em rigor, a causa da extinção da instância, nos termos do disposto no art. 277, d) (Miguel Teixeira de Sousa, Código de Processo Civil Online cit., p. 176) [---], põe termo ao litígio pendente entre as partes outorgantes mediante recíprocas concessões – que podem ir para além do direito controvertido (STJ 3.03, 2020, 2056/14.0TBGMR.A.G2.S1., ECLI:PT:STJ:2020:2056.14.0TBGMR.A.G2.S1, RG 6.04.2022, 449/21.5T8VCT.G1) –, subtraindo a relação material controvertida objeto da ação ao ato de julgamento. Como tal, no dizer de Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, III, reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 1960, p. 499, “a lide não é decidida por sentença; é composta por acordo das partes. A função dessa sentença não é decidir a controvérsia substancial, é unicamente fiscalizar a regularidade e validade do acordo. De maneira que a verdadeira fonte da solução do litígio é o ato de vontade das partes e não a sentença do juiz.” O mesmo autor acrescenta, de forma ilustrativa (Comentário cit., p. 534), que “[o] papel do juiz é semelhante ao do notário quando se certifica da identidade e idoneidade dos outorgantes que perante ele comparecem e se dispõem a celebrar uma escritura pública.”

Dito de outra forma, a sentença homologatória da transação não tem um conteúdo especificamente jurisdicional ou decisório sobre o objeto, já que são as partes quem dispõe da situação e escolhem a solução a dar ao litígio. Neste sentido, Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil. Conceito e Princípios Gerais à Luz do Código Revisto, 3.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2013, p. 35, escreve que “podem autor e réu celebrar transação, isto é, acordar em concessões recíprocas para porem termo ao litígio (…). Também nestes casos se segue uma sentença de mérito, mas agora com natureza meramente homologatória, pois o tribunal limita-se a verificar se as partes no negócio eram capazes e tinham legitimidade para se ocupar do objeto negocial e se este era disponível, só não homologando se se verificar incapacidade de uma das partes ou indisponibilidade, subjetiva ou objetiva, do objeto (…). Havendo homologação, a sentença é proferida em conformidade com a vontade das partes e não mediante aplicação do direito objetivo aos factos provados, tutelando o direito subjetivo ou o interesse juridicamente protegido que, em conformidade, se verifique existir.”

Esta constatação leva Alberto dos Reis (Comentário cit., p. 499) a entender que, nas situações em que, realizada uma transação, uma das partes vem propor contra a outra nova ação cujo objeto versa precisamente sobre a relação jurídica substancial auto-composta, não é correto falar-se em de “exceção de caso julgado.”

De facto, a exceção de caso julgado pressupõe, nos termos com que foi iniciada esta exposição, que a causa tenha sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário e tem por fim evitar que o Tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior. O que se verifica é uma exceção atípica de transação, enquadrável na previsão não taxativa do corpo do art. 577. De resto, como nota o citado RE 12.04.2018, os critérios legais tendentes à identificação da repetição da causa para proceder a exceção de caso julgado (art. 581 do CPC) – identidade de sujeito, de pedido e de causa de pedir – são inadequados tendo em conta que as concessões recíprocas podem não se esgotar no direito controvertido e, como tal, modificar o objeto do processo. Neste sentido, podem ver-se STJ 5.03.2001, 01A2924, RE 12.04.2018, 1017/17.1T8FAR.E1, e RG 15.06.2021, 1990/19.5T8VCT.G1. Na doutrina, também Rita Lobo Xavier, “Transação Judicial e Processo Civil”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, III, Lisboa: FDUL, 2010, pp. 817-835, afasta a invocação, em tais situações, da exceção do caso julgado, argumentando que a situação compositiva tem origem na vontade das partes e não pode considerar-se res iudicata, e designa a exceção (dilatória) traduzida na invocação da sentença homologatória como “exceção preclusiva por efeito de transação.” [---]Tal exceção apenas pode, prima facie, ser invocada perante quem foi parte na transação, o que é uma consequência do princípio da eficácia relativa dos contratos (art. 406/2 do Código Civil). Ressalvam-se as situações excecionais em que o contrato acaba por produzir efeitos, negativos ou positivos, junto de determinados terceiros. [---]

Por outro lado, como resulta claramente do n.º 2 do art. 291, a transação, como negócio jurídico que é, tipificado no art. 1248 do Código Civil, pode ser declarada nula ou anulada como qualquer negócio jurídico, ao que não obsta o trânsito em julgado da respetiva sentença homologatória (art. 291/1 e 2). O interessado, como tal entendido, no caso da declaração de nulidade, em conformidade com o art. 286 do Código Civil, o titular de “qualquer relação cuja consistência, tanto jurídica, como prática, seja afetada pelo negócio” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 263; Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª edição, Coimbra: Coimbra Editora, 1987, p. 620), ou, no caso de anulabilidade, a pessoa em cujo interesse a lei a estabelece (art. 287/1 do Código Civil), pode optar entre intentar diretamente o recurso extraordinário de revisão (art. 696, d)) ou começar por propor a ação de declaração de nulidade ou de anulação, embora, neste caso, fique responsável pelo pagamento das respetivas custas (art. 535/1 e 2, d)).

*3. [Comentário] Salva a devida consideração pelo "imortal" Alberto dos Reis, não se compreende o motivo pelo qual se rejeita a aplicação da excepção de caso julgado à sentença homologatória de uma transacção.

A pergunta que se deve fazer é a seguinte: se, durante a pendência da acção, as partes celebrarem uma transacção, isso produz imediatamente efeitos no processo? Supõe-se que a resposta só pode ser: não; os efeitos da transacção só se produzem depois da sua homologação.

Portanto, a transacção necessita da homologação para produzir efeitos dentro e fora do processo. Por outro ângulo: a sentença de homologação produz o efeito de caso julgado, tanto na modalidade de autoridade, como na de excepção de caso julgado.

Aliás, se houvesse uma excepção dilatória de transacção, também teria de haver uma correspondente excepção dilatória de desistência ou de confissão do pedido.

MTS
 

08/05/2024

Bibliografia (1124)


-- Kiehne, Wenzel, Tatsachendisposition im Zivilprozess / Eine Untersuchung über die prozessuale Umgehung zwingenden materiellen Rechts (Duncker & Humblot: Berlin 2024)

Jurisprudência 2023 (165)


Acção de reivindição;
causa de pedir; pedido


1. O sumário de RC 26/9/2023 (244/22.4T8SCD.C1) é o seguinte:

I. Se o A. descreve na P.I. , que segundo ele, os RR. terão praticado, com os quais violaram a sua propriedade, ocupando, tal parcela indevidamente, arrancando, as pedras delimitadoras do seu prédio com o do A. e a demove-las do local, fazendo-as desaparecer, começando a plantar bacelo além do limite do seu prédio, dentro do prédio do A., arrancaram várias videiras da sua estacada, para retirar sinais de demarcação dos limites dos prédios, começaram a arrastar as terras que suportavam as pedras, fazendo estender os limites dos seus prédios, colocando piais de cimento nos prédios do A., não está em causa um pedido de demarcação do terreno, ainda que fale em demarcar, mas sim para reivindicar tal parcela, que segundo ele, foi ilegitimamente ocupada pelos RR.

II. Pelo que, não se verifica a ineptidão da petição inicial, por cumulação indevida de pedidos, nem por contradição entre o pedido e a causa de pedir.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"[...] a questão a decidir - consiste em saber se a petição inicial é ou não inepta. [...]

Dito isto, passemos analisar a questão em apreço.

- Saber se a petição é ou não inepta.

Segundo o recorrente, a mesma não é inepta, desde logo, por o Tribunal não poder considerar que houve cumulação de causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis, na verdade, refere não há na petição cumulação de pedidos nem qualquer confusão na causa de pedir, o pedido formulado está de acordo com a causa de pedir e a factualidade invocada nunca e em tempo algum colocou dúvidas ou contradições quanto à causa de pedir e ao pedido.

Mais refere, que apresentou uma petição que preenche todos os requisitos legais e formais para prosseguir como ação de reivindicação e nunca apresentou qualquer factualidade ou pedido que pudesse confundir-se com a causa de pedir de uma ação de demarcação.

Oposição oposta advogou a decisão recorrida.

Vejamos.

Antes demais [sic], iremos dizer algo a respeito da figura em causa – Ineptidão da P.I.

Como é sabido, é a causa de pedir que serve de fundamento à ação, isto é, o facto jurídico concreto em que se baseia a pretensão deduzida em juízo pelo autor (artigo 581.º, n.º 4, do Código de Processo Civil). 

E como é consabido, o processo é de todo nulo sempre que a petição inicial se considere inepta, v.g. quando haja falta ou ininteligibilidade, quer do pedido, quer da causa de pedir ou, ainda, quando o primeiro esteja em contradição com o segundo – art.º 186º do CPC. [...]

Ao delinear o regime da ineptidão da petição inicial a intenção e finalidade da lei foi “impedir o prosseguimento duma ação viciada por falta ou contradição interna da matéria objeto do processo, que mostra desde logo não ser possível um ato (unitário) de julgamento, «judicium»” ( cfr. Castro Mendes, Direito Processual Civil, III, pag. 47), ou dito de outro modo, com “a figura processual da ineptidão da petição inicial visa-se, em primeiro lugar, evitar que o juiz seja colocado na impossibilidade de julgar concretamente a causa, decidindo sobre o mérito, em face da inexistência do pedido ou da causa de pedir, ou do pedido e da causa de pedir que se não encontrem deduzidos em termos inteligíveis, visto só dentro dessas balizas se mover o exercício da atividade jurisdicional declaratória do direito”, sendo certo que além desse propósito de circunscrever e definir os poderes do juiz quanto à atividade decisória, a figura da ineptidão propõe-se “ainda impedir se faça um julgamento sem que o réu esteja em condições de se defender capazmente, para o que carece de conhecer o fundamento do pedido contra ele deduzido” (cfr. A. de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, 1981, Vol. II, pp. 219 e 220).

Pode afirmar-se, pois, que com o instituto da ineptidão da petição inicial se visa obstar ao prosseguimento de ações onde esteja logo à partida coartada a possibilidade de o juiz proceder a um julgamento sobre o fundo da causa (julgamento de facto e de direito) por a peça que introduz o feito em juízo padecer de qualquer dos vícios enumerados no n.º 2 do art.º 186.º do C.P.C. – seja porque impede ou dificulta em termos irrazoáveis e desproporcionados a defesa do réu, seja porque não carreia para os autos os factos que constituem o objeto do processo e nos quais o juiz se pode basear para decidir o litígio (art.º 5, n.º 1 a 3 do C.P.C.). [...]

Dito isto, voltemos ao caso em apreço.

Operando à leitura do pedido formulado pelo A., verificamos que são várias as pretensões, desde logo, o reconhecimento de que ele e a requerida são donos e legítimos possuidores dos prédios identificados no artigo 1.º da PI, sendo que os limite dos prédios coincide com a localização das pedras antigas, cepas de videira velhas e piais em pedra antigos, melhor indicados no art.º 15 da PI.

Os RR. insurgem-se, contra tal, por entenderem, estar-se perante uma ineptidão da Petição Inicial, porquanto a causa de pedir assenta em ação de demarcação.

Ainda que a questão, colocada pelo recorrente, não consista em saber se é ou não possível haver cumulação de pedidos na ação de demarcação com a ação de reivindicação, não deixaremos, de dizer, algo a respeito, até por a decisão parecer enveredar, por esse caminho, para a prolação da mesma.

De forma sintética, pode dizer-se que enquanto a ação de reivindicação pressupõe a definição precisa da coisa imóvel reivindicada, nomeadamente dos seus limites [---], operando a restituição dentro desses limites, a ação de demarcação implica necessariamente uma situação de incerteza ou dúvida quanto a uma ou várias estremas do imóvel a demarcar, destinando-se precisamente à definição precisa das linhas que permitem a determinação dos limites dos prédios em que se regista essa incerteza.

Digamos, desde já, que tem sido jurisprudência constante, ao menos à luz da jurisprudência publicada, a afirmação de que existe incompatibilidade substancial de pedidos no caso de cumulação real de pedido de reivindicação e de demarcação (cfr. a propósito sem preocupações exaustivas, por ordem cronológica, os seguintes acórdãos, todos acessíveis na base de dados da DGSI: acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de janeiro de 2003, processo 02A1029; acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 09 de outubro de 2008, processo 1192/08-3; acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 31 de outubro de 2013, processo 98/11.6TBNIS.E1; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 05 de abril de 2018, processo 75/15.8T8TMC.G1; acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25 de janeiro de 2021, relatado pelo Sr. Desembargador segundo-adjunto nestes autos, processo 4029/18.4T8STS.P1; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25 de março de 2021, processo 768/21.0T8BRG-B.G1; acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13 de julho de 2021, processo 500/20.6T8ALB.P1 e acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15 de fevereiro de 2022, processo 768/21.0T8CVL.C1.). [...]

Independentemente da posição advogada sobre este ponto, a questão que temos entre mãos não passa por este ponto.

Como referimos in supra [sic], temos para nós que a questão, colocada no presente recurso consiste em saber se há contradição entre o pedido e a causa de pedir, referindo o recorrente, que tal não se verifica, desde logo, por afirmar, que o pedido formulado está de acordo com a causa de pedir e a factualidade invocada nunca e em tempo algum colocou dúvidas ou contradições quanto à causa de pedir e ao pedido.

Opinião oposta têm os recorridos, tanto assim, que na contestação pugnam pela ineptidão da P.I., por entenderem que o pedido está em contradição com a causa de pedir, pois que o pedido assenta a sua causa de pedir na demarcação dos prédios e, depois, o pedido visa o reconhecimento do direito de propriedade,

Vejamos.

Antes demais [sic] cabe referir, que também nós não vislumbramos que o A. tenha cumulado o pedido de reivindicação com o demarcação.

Dito isto, passemos ao caso em apreço.

Operando à leitura da P.I. podemos constatar, vários “setores”, a saber.

Do art.º 1 ao 11, factos relativos ao terreno propriedade do A., agora recorrente.

Do art.º 12 a 14, factos relativos ao terreno propriedade dos RR.

Dos art.ºs 15 a 18 delimitação que tinham os terrenos, segundo o A.

Dos art.ºs 19 a 48 factos praticados pelo R., que segundo o ponto de vista do A. invadiram a sua propriedade e por consequência alteraram a marcação que os terrenos* tinham, como refere nos art.ºs 19, a 23 e 31 que aqui se transcrevem

19. Acontece, porém, que desde há 3 anos para cá os Réus começaram a arrancar as pedras delimitadoras do seu prédio com o do A. e a demove-las do local, fazendo-as desaparecer,

20. Começaram a plantar bacelo além do limite do seu prédio, dentro do prédio do A.,

21. Arrancaram várias videiras da sua estacada, para retirar sinais de demarcação dos limites dos prédios,

22. Começaram a arrastar as terras que suportavam as pedras, fazendo estender os limites dos seus prédios e

23. Mais grave ainda, colocaram piais de cimento nos prédios do A., muito além do limite demarcador dos mesmos,

31. Tentando estender o limite do seu prédio com a colocação daqueles piais em cimento chumbados no pavimento e tentando apoderar-se da propriedade do A e da requerida.

Quanto a nós, se, numa primeira leitura, poderíamos pensar que a causa de pedir, assentaria em demarcar os prédios em causa, operando a uma leitura mais atenta, afigura-se-nos, que efetivamente assim não é.

Na verdade, o que o A. descreve na P.I. são factos, que segundo ele, os RR. terão praticado, com os quais violaram a sua propriedade, ocupando, tal parcela indevidamente, arrancando, as pedras delimitadoras do seu prédio com o do A. e a demove-las do local, fazendo-as desaparecer, começando a plantar bacelo além do limite do seu prédio, dentro do prédio do A., arrancaram várias videiras da sua estacada, para retirar sinais de demarcação dos limites dos prédios, começaram a arrastar as terras que suportavam as pedras, fazendo estender os limites dos seus prédios, colocando piais de cimento nos prédios do A.

Ou seja, descreve tais factos, não para pedir a demarcação do terreno, ainda que fale em demarcar, mas sim para reivindicar tal parcela, que segundo ele, foi ilegitimamente ocupada pelos RR.

Assim, pelo exposto, temos para nós, não estar a P.I. ferida de ineptidão, procedendo a pretensão do recorrente."


*3.
[Comentário] Neste Blog tem-se defendido a orientação de que não há nenhuma incompatibilidade substantiva entre os pedidos de reivindicação e de demarcação (por exemplo, aquiaqui).

MTS


07/05/2024

Legislação (234)


Juízes dos Tribunais Judiciais



-- Aprovação do Código de Conduta dos Juízes dos Tribunais Judiciais



-- Alteração do Regulamento do Quadro Complementar de Juízes



-- Aprovação do Regulamento sobre a Aplicação nos Tribunais da Relação da Medida de Exercício de Funções em Acumulação

 

Legislação europeia (30)


Abuso do processo;
"ações judiciais estratégicas contra a participação pública" (SLAPP)


-- Diretiva (UE) 2024/1069 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de abril de 2024, relativa à proteção das pessoas envolvidas na participação pública contra pedidos manifestamente infundados ou processos judiciais abusivos («ações judiciais estratégicas contra a participação pública»), JO L 2024/1069, de 16/4/2024

Jurisprudência 2023 (164)


Prestação de contas;
processo dependente


I. O sumário de RL 26/9/2023 (608/22.3T8VFX-A.L1-7) é o seguinte:

1.– Não é nula, nem por excesso, nem por omissão de pronúncia, a decisão de indeferimento liminar, proferida logo após a distribuição dos autos, assente sobre um dos possíveis enquadramentos jurídicos da questão com a qual a parte podia razoavelmente contar, fundada na suposta impropriedade da forma e na manifesta inexistência do direito afirmado pela autora.

2.– O prazo de um ano compreendido no n.º 1 do art. 2093.º do Cód. Civil deve ser contado desde o momento em que, na pessoa do devedor da prestação de contas, se reúnem os pressupostos imediatamente previstos na lei substantiva para o exercício do cargo de cabeça-de-casal.

3.– A dedução de pedido visando a prestação de contas pelo cabeça de casal, por apenso ao processo de inventário, respeitante à sua administração da herança em período anterior à nomeação judicial para o cargo, conjuntamente com idêntico pedido respeitante à administração realizada após esta nomeação, traduz uma cumulação inicial de pedidos (arts. 549.º, n.º 1, e 555.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil).

4.– O caso descrito no ponto anterior resolve-se nos quadros do disposto no n.º 1 do art. 37.º e no n.º 1 do art. 555.º, ambos do Cód. Proc. Civil, sendo de concluir que inexiste obstáculo processual à referida cumulação inicial de pedidos.

5.– A instauração da ação (de processo especial) de prestação de contas por apenso ao processo de inventário (art. 947.º do Cód. Proc. Civil), quando não é deste dependente, não se resolve num problema de impropriedade da forma ou do meio processual, mas sim de falta de distribuição (art. 205.º do Cód. Proc. Civil).


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"4. Demanda do réu AM
4.1. Indevida demanda como dependência de outra causa

Como vimos, a decisão impugnada, no que ao réu AM diz respeito, funda-se na circunstância de “tal ação de prestação de contas [ser] alheia ao cabecelato exercido no âmbito do processo de inventário, pelo que não deverá correr por apenso ao mesmo – cfr. art. 947.º do Cód. Proc. Civil”. O tribunal a quo identificou, muito certeiramente, uma anomalia adjetiva da ação, mais precisamente, na demanda do réu AM.

Estabelece o art. 941.º do Cód. Proc. Civil que “[a] ação de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se”. Tratando-se de uma obrigação do cabeça de casal, são as contas “prestadas por dependência do processo em que a nomeação haja sido feita” – art. 947.º do Cód. Proc. Civil. O mesmo é dizer que, por força do disposto no art. 206.º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil, a ação para prestação de contas por parte do cabeça de casal deve correr por apenso ao processo de inventário “em que a nomeação haja sido feita”.

Nunca tendo o réu sido nomeado cabeça de casal, falece a conexão processual que justifica e impõe a dispensa de distribuição da ação de prestação de contas. Tal não significa, porém, que, tendo a ação sido instaurada por apenso, a sanção para a falta de distribuição seja o indeferimento liminar da petição inicial. A este respeito, determina o art. 205.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil que, no que aqui releva “[a] falta (…) da distribuição não produz nulidade de nenhum ato do processo, mas pode ser (…) suprida oficiosamente até à decisão final”.

Em suma, em geral – vista isoladamente a ação instaurada contra AM –, não deve a petição inicial ser liminarmente indeferida, se for constatado o seu irregular processamento por apenso, devendo, sim, ser remetida à distribuição (dando-se baixa do apenso indevidamente criado, por culpa do autor), com eventual tributação em custas, pela atividade anómala gerada – não ficando prejudicado o conhecimento da competência territorial, designadamente, por parte do juiz a quem viesse a ser distribuída a ação, caso seja excecionada a incompetência do tribunal.

No entanto, em concreto, a ação instaurada contra AM não pode ser vista isoladamente, já que a autora o demandou conjuntamente com a ré MR. Assim, se a demanda conjunta não for admissível, não restará outra solução que não seja a absolvição do réu da instância, sem necessidade da indicação prevista no n.º 1 do art. 38.º do Cód. Proc. Civil, já que o mais pedido (a contra a ré) pode ser apreciado na ação a correr por apenso, sendo impossível a cisão da petição (para remessa de uma sua secção à distribuição). O mesmo se diga, caso se conclua – em face da factualidade trazida pela autora em resposta ao convite ao aperfeiçoamento da petição que lhe deve ser dirigido – que a demanda conjunta é, em abstrato possível, nos quadros da coligação, relativamente à indicação prevista no n.º 4 do art. 37.º do Cód. Proc. Civil.

Como vimos, pode estar em discussão uma administração conjunta (em coautoria) por parte dos dois réus, a qual pode justificar (ou impor) a instauração de uma única causa, correndo os termos necessários aplicáveis à demanda da cabeça de casal. Esta incerteza só poderá ser ultrapassada em face da resposta que a autora der ao convite ao aperfeiçoamento da petição que lhe deve ser dirigido."

[MTS]


06/05/2024

Jurisprudência 2023 (163)


Processo de inventário;
articulado superveniente; preclusão


1. O sumário de RC 12/9/2023 (38/21.4T8CNF-A.C1) é o seguinte:

I – Em processo de inventário apresenta-se como intempestivo o requerimento apresentado pelo cabeça de casal no sentido de serem efetuadas diligências tendentes à identificação de contas bancárias onde se mostrem depositados valores que alegadamente integram o património comum do casal, efetuado depois de proferida a decisão a que se refere o art. 1110.º, n.º 1, a) do CPC – resolução das questões suscetíveis de influir na determinação dos bens a partilhar.

II – Apesar de notoriamente vocacionado para o processo comum, não repugna a admissibilidade, em geral, do regime constante do art. 588.º do CPC (apresentação de articulado superveniente), na tramitação do processo especial de inventário (cfr. art. 549.º, n.º 1 do CPC), ainda que com as necessárias adaptações.

III – A apresentação desse articulado superveniente, com o objetivo de ampliar a relação de bens por parte do cabeça-de-casal, é intempestiva quando a sua dedução tenha ocorrido depois do encerramento da discussão da fase processual destinada à determinação dos bens a partilhar.

IV – Para efeitos do disposto no art. 588.º, n.ºs 4 e 5 do CPC é exigível, sob pena de indeferimento liminar, a alegação quanto à data em que a parte tomou conhecimento dos factos, e a indicação da prova a esse propósito, não podendo o tribunal suprir essas omissões mediante o convite ao seu suprimento, efetuado ao abrigo do princípio da cooperação.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O despacho recorrido tem o seguinte teor:

BB, cabeça de casal no presente inventário para separação de meações, veio requerer a realização de diligências probatórias adicionais, tendo em vista aferir que contas bancárias eram tituladas pelo interessado AA à data da decretação do divórcio. Para tanto, alega ter agora obtido “informações muito credíveis de familiares” de que o ex-cônjuge era titular de várias contas bancárias, circunstância que reputa de “absolutamente normal” face à profissão por este exercida.

Notificado para pronunciar quanto à pretensão da cabeça de casal, o interessado AA nada disse.

Cumpre apreciar e decidir.

É consabido que o quadro processual do regime do inventário na redacção dada pela Lei n.º 117/2019, de 13/09 introduziu amplas alterações ao paradigma pregresso, sendo uma delas a existência de fases processuais estanques, numa lógica de auto-responsabilização das partes. Aos desideratos de celeridade e de simplificação processual inerentes à reforma do processo de inventário, o legislador fez corresponder um princípio de auto-responsabilidade das partes, instituindo um sistema de preclusões que, concorrendo embora para uma marcha processual mais ágil, onera as partes com o exercício tempestivo das faculdades que adjectivamente lhes são conferidas.

Sabendo-se que a preclusão não encontra assento legal expresso, configura um instituto de criação doutrinal e jurisprudencial, radicado no ónus da concentração da defesa aplicável à contestação, cf. art. 573.º do CPC. Na síntese de Miguel Teixeira de Sousa, “(…) a preclusão pode ser definida como a inadmissibilidade da prática de um acto processual pela parte depois do prazo peremptório fixado, pela lei ou pelo juiz, para a sua realização” – “Preclusão e caso julgado”, Blog do IPPC, 2016, p. 1.

Nas esclarecedoras palavras de Pedro Pinheiro Torres, a propósito do ónus de alegação e prova a cargo do cabeça de casal, “[p]rocurou valorizar-se o processo de partes, configurado pelos articulados, o que, de modo significativo, se traduz na imposição ao requerente do inventário, quando este se arrogue ser titular (por direito ou obrigação legal) do exercício das funções de cabeça de casal, de um ónus de alegação e prova em tudo semelhante ao cometido a um qualquer autor numa ação judicial, passando a competir-lhe, nos termos do artigo 1097.º do CPC, trazer aos autos os elementos de identificação e prova suficientes para que sejam conhecidos a causa de pedir (abertura de sucessão) a sua legitimidade e os demais interessados, todos os elementos que entenda poderem influenciar a partilha, e a relação dos bens e dos créditos e dívidas da herança, deste modo se reunindo naquela peça processual diversos actos até aqui dispersos” - Notas Breves de Apresentação do Processo de Inventário na Redacção dada pela Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, Inventário: o novo regime, Centro de Estudos Judiciários, 2020, p. 21.

Também Carlos Lopes do Rego deixa clara a mudança de paradigma, sublinhando que é possível destrinçar, actualmente, uma fase de articulados, que abrange a fase inicial (espoletada com um requerimento que, quando apresentado pelo cabeça de casal, assume a natureza de petição inicial) e as fases de oposições e de verificação do passivo, “em que as partes, para além de requererem a instauração do processo, têm obrigatoriamente de suscitar e discutir todas as questões que condicionam a partilha, alegando e sustentando quem são os interessados e respetivas quotas ideais e qual o acervo patrimonial, ativo e passivo, que constitui objeto da sucessão” – “A recapitulação do processo de inventário”, Julgar Online, Dezembro de 2019, p. 9.

A marcha processual do processo de inventário caracteriza-se, assim, por fases distintas e estanques, que fluem inexoravelmente para a realização da partilha, e entre as quais não há, nem pode haver, vasos comunicantes. São elas: (i) a fase dos articulados, que tem por elemento axial a relação de bens e a declaração de compromisso de honra, (ii) a fase de oposição, impugnação e reclamação, (iii) o despacho de saneamento, forma à partilha e agendamento da conferência de interessados, (iv) conferência de interessados e, finalmente, (v) mapa de partilha e sentença homologatório.

É através deste recorte processual que o legislador pretende que se estabilizem, na fase de saneamento do processo, todas as questões que possam influir na partilha, quais sejam a identificação das pessoas que a ela concorrem, os respectivos quinhões ideais e o acervo patrimonial a partilhar. Daí que, uma vez proferidos os despachos previstos nos n.ºs 1 e 2 do art. 1110.º do CPC, não seja admitida a reapreciação das questões de facto e direito sobre as quais eles incidiram, sendo a interposição de recurso o meio processualmente próprio para reagir a tais decisões, como previsto no art. 1123.º, n.º, 2, al. b).

São apodícticas as palavras de Pedro Pinheiro Torres a este propósito: “Após o termo do prazo resultante da notificação prevista na al. b) do n.º 1 do art. 1110.º, o juiz deverá proferir um despacho sobre o modo como deve ser organizada a partilha, definindo as quotas ideais de cada interessado e designando dia para a realização da conferência de interessados. Com a previsão da prolação dos despachos enunciados nos n.ºs 1 e 2 do artigo 1110.º do CPC o legislador procurou dotar os interessados do conhecimento dos termos (fixados pelo Juiz) em que deverão intervir na Conferência de Interessados, quer relativos aos bens a partilhar ou aos encargos da herança, quer os relativos ao quinhão ideal de cada um na herança, isto é, à “percentagem” com que cada um concorre à mesma, independentemente dos bens que, em concreto, poderão vir a preencher esses quinhões.

Com estas decisões pretende-se estabilizar, nesta fase do saneamento, as questões de facto e de Direito suscetíveis de interferir no curso da “partilha” propriamente dita, excetuando deste o conhecimento de eventual incidente de verificação e redução de inoficiosidades, que deve ser suscitado até ao momento do início das licitações e sobre o qual mais abaixo será feita uma referência mais detalhada.

Como reforço dessa proposta de estabilidade – e, naturalmente, da força dessas decisões no processo – foi consagrada, na alínea b) do n.º 1 do artigo 1123.º do CPC a possibilidade de apelação autónoma das decisões de saneamento do processo e de determinação dos bens a partilhar e da forma da partilha, admitindo-se, mesmo, no n.º 3 desse artigo que o Juiz poderá atribuir efeito suspensivo do processo ao recurso interposto daquelas decisões se a questão a ser apreciada puder afetar a utilidade prática das diligências que devam ser realizadas na conferência de interessados.

Com esta previsão de recorribilidade, cria-se, naturalmente, a força do trânsito em julgado daquelas decisões, quando não impugnadas, retirando, assim, às partes, a possibilidade de virem a suscitar, posteriormente, as questões conhecidas nas mesmas, como se de meras decisões interlocutoras se tratasse” – cf. “Notas Breves (…)” cit., p. 26.

Tendo presentes estas premissas, fácil é concluir que a realização das diligências probatórias requerida pela cabeça de casal carece de fundamento legal, por ostensivamente extemporânea.

Com efeito, no dia 14/01/2023 foi proferida sentença relativa à reclamação à relação de bens deduzida pelo interessado AA, o que equivale dizer que foram resolvidas todas as questões susceptíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar, sem prejuízo daquelas quanto às quais as partes foram remetidas para os meios comuns. Logo, a realização de diligências probatórias adicionais com vista à identificação de outros saldos bancários que, eventualmente, pudessem integrar o património comum, implicaria a reapreciação de questões relativamente às quais o tribunal já se pronunciou e, decorrentemente, quanto às quais está esgotado o seu poder jurisdicional (cf. art. 613.º, n.º 1 do CPC). Numa palavra, está encerrada a segunda fase do processo, i.e., a fase de oposição, impugnação e reclamação.

Sempre se diga que, ainda que não tivesse sido proferida decisão quanto à reclamação à relação de bens, sempre a pretensão da cabeça de casal estaria votada ao insucesso. Isto porque, pese embora pudessem ser alegados factos objectiva ou subjectivamente supervenientes, nos termos consignados no art. 588.º do CPC, esta segunda modalidade de superveniência (como é o caso da invocada) depende da prova de que a parte apenas tomou conhecimento dos mesmos após o termo dos prazos previstos nos artigos 1104.º e 1105.º. Ora, uma vez que a cabeça de casal não indicou qualquer meio de prova da superveniência que alega, não poderia ser admitida a introdução de elementos factuais inovadores. Mal se compreende, de resto, que, sendo conhecedora da profissão do interessado, carecesse da informação de um familiar para requerer as informações bancárias ora solicitadas, já que as poderia ter requerido no momento processualmente próprio.

Em face do exposto, e sem necessidade de considerações adicionais, indefere-se o requerido pela cabeça de casal”.

Ou seja, no despacho recorrido entendeu-se, para fundamentar o indeferimento da realização das diligências pretendidas, que

- à data da formulação do requerimento se encontrava encerrada a fase de oposição, impugnação e reclamação; e

- não ter sido produzida prova da superveniência do conhecimento (quanto à existência de outras contas tituladas pelo cointeressado à data do divórcio).

Já a recorrente defende nas suas alegações de recurso que o requerimento é tempestivo na medida em que foi apresentado antes de ter sido proferido o despacho a que se refere o art. 1110.º, n.º 2 do CPC e que, a ser exigível a apresentação de prova quanto à superveniência do conhecimento, cabia ao Sr. Juiz convidar a recorrente a apresentar essa prova, ao abrigo do princípio da cooperação.

Vejamos:

A interessada, ora recorrente, desempenha no processo de inventário as funções de cabeça de casal, sendo que o requerimento inicial foi apresentado pelo seu ex-marido.

Competia-lhe, como tal, após a citação, apresentar a relação de todos os bens sujeitos a inventário, a incluir a relação dos créditos e das dívidas (cfr. art. 1097.º, n.º 3, c), 1098.º e 1102.º, n.º 1, b) do CPC).

Na relação de bens que apresentou (em 19 de maio de 2021 – ref. 4688313), e no que se refere a saldos de contas bancárias, a cabeça de casal apenas relacionou o montante depositado no Banco 1... na conta n.º ...39 (verna n.º 7 – dinheiro/frutos civis), no montante de € 16.315,83.

Nada mais referiu quanto à possível existência de outras bancárias onde estivesse depositado dinheiro ou valores pertença do casal, nem requereu a realização de qualquer diligência no sentido de verificar a sua hipotética existência.

O interessado apresentou reclamação quanto à relação de bens (a 30.06.2021 – ref.- 4765004), a que a cabeça de casal respondeu. [...]

Após produção de prova, a 14.01.2023 (ref. 91817798), foi proferida decisão atinente à reclamação, na parte que ainda subsistia, julgando-a improcedente, com a manutenção da verba n.º 7 na relação de bens (embora com redução do valor para € 15.404,86).

No final dessa decisão o Sr. Juiz ordenou a notificação dos interessados para efeitos do disposto no art. 1110.º, n.º 1, b) do CPC (proporem a forma da partilha), e bem assim a cabeça de casal para juntar nova relação de bens atualizada em função do decidido quanto à reclamação à relação de bens.

Foi então, decorrido mais de um mês após a prolação dessa decisão, em 13.02.2023, que a cabeça de casal veio formular o requerimento em causa, com o óbvio propósito de ampliar o objeto da partilha a créditos correspondentes ao saldo - à data do divórcio - de outras contas bancárias tituladas pelo interessado.

Contudo, esse requerimento apresenta-se como manifestamente intempestivo, por não ter sido formulado aquando da apresentação da relação de bens. [...]

Resta aferir se o requerimento podia ter sido enquadrado no âmbito do art. 588.º do CPC e se, nesse âmbito, incumbia ao tribunal o dever de convidar o cabeça-de-casal a suprir a falta de indicação da prova quanto à superveniência.

Apesar de notoriamente vocacionado para o processo comum, não repugna a admissibilidade, em geral, do regime constante do art. 588.º do CPC (articulado superveniente), ainda que com as necessárias adaptações, na tramitação do processo especial de inventário (cfr. art. 549.º, n.º 1 do CPC).

Todavia, ainda que no caso estivéssemos na presença de factos supervenientes - na justa medida em que relevam para efeitos da definição da massa a partilhar e foram conhecidos depois de findar o prazo para a prática do ato de relacionar os bens – o recurso a este mecanismo processual é intempestivo, por a sua dedução ter ocorrido depois do encerramento da discussão quanto à determinação dos bens a partilhar.

Na verdade, o requerimento em causa foi apresentado depois da decisão relativa a essa fixação e, consequentemente, depois de formado caso julgado formal sobre a mesma.

Na fase presente, os autos incluem apenas a determinação da forma da partilha, a conferência de interessados e a sentença da partilha, que não comportam a possibilidade de discussão sobre o património a partilhar, não tendo nenhum desses atos as finalidades correspondentes à audiência prévia ou à audiência final.

Mas, ainda que assim não se entendesse, e mesmo que se ignorassem também os termos imprecisos com que foi formulado [---], sem ao menos mencionar a fonte do conhecimento, nunca o requerimento podia ser admitido porquanto a recorrente não concretizou a data em que tomou conhecimento dos factos, nem ofereceu prova a esse propósito, inviabilizando, desde logo, a apreciação da tempestividade para efeitos do disposto no art. 588.º, n.º 3 do CPC.

E, face ao que resulta diretamente do art. 588.º, n.ºs 4 e 5 do CPC, essas faltas implicam a rejeição liminar do requerimento, não se justificando qualquer convite ao seu suprimento, efetuado ao abrigo do princípio da cooperação (art. 7.º do CPC [Como referem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 3.ª edição, pág. 615) “Que, na falta de prova da superveniência, o articulado deve ser rejeitado, é uma decorrência do dever judicial de rejeição por verificação da apresentação do articulado fora de prazo. Só assim não seria se, ao invés, a apresentação fora do prazo não fosse oficiosamente cognoscível”]).

Na verdade, não impende sobre o tribunal qualquer dever de atuação oficiosa neste domínio, sendo que, como se refere no Ac. do TRG de 23.05.2019 (processo 1345/18.9T8CHV-A.G1 [---]) “o exercício do dever de diligenciar pelo apuramento da verdade e justa composição do litígio, não comporta uma amplitude tal que o autorizem a colidir quer com o princípio da legalidade e da tipicidade que comanda toda a tramitação processual, quer com outros princípios fundamentais como o do dispositivo, da autorresponsabilidade das partes e o da preclusão”."

[MTS]