"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



23/04/2024

Jurisprudência uniformizada (67)


Massa insolvente; providência conservatória;
venda executiva

-- Ac. STJ 4/2024, de 23/4, uniformizou jurisprudência no seguinte sentido:

O produto da venda dos bens penhorados em processo de execução, no qual tenha sido proferida sentença de verificação e graduação de créditos, com trânsito em julgado, só é de considerar pago ou repartido entre os credores, para os efeitos do artigo 149.º, n.º 2, do CIRE, com a respectiva entrega. - O titular de um crédito reconhecido e graduado por sentença transitada em julgado num processo de execução, apensado ao processo de insolvência do devedor/executado, não está dispensado de reclamar o seu crédito, no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento.


Bibliografia (1121)


-- Barbieri, Federica, La direzione del giudice e l’economia processuale (E.S.I.: Napoli 2024)


Jurisprudência constitucional (226)


Direito ao recurso


1. TC 10/4/2024 (292/2024) decidiu o seguinte:

a) não conhecer do objeto do recurso relativamente à norma contida no artigo 629.º, n.º 1, do Código de Processo Civil;

b) não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 62.º, n.º 1, da Lei Organização, Competência e Funcionamento dos Julgados de Paz (Lei n.º 78/2001, de 13 de julho), na redação introduzida pela Lei n.º 54/2013, de 31 de julho, na interpretação segundo a qual não é admissível recurso para os tribunais da Relação das decisões dos tribunais de comarca que apreciem as impugnações de decisões dos julgados de paz; [...]

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"2. O recorrente indica, como objeto do recurso, (i) a norma contida no artigo 62.º, n.º 1, da LJP, na interpretação segundo a qual não é admissível recurso para os tribunais da Relação das decisões dos tribunais de comarca que apreciem as impugnações de decisões dos julgados de paz e (ii) a norma contida no artigo 629.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), na interpretação segundo a qual “[…] o recurso ordinário só é admissível, quando a causa tenha valor superior à alçada do Tribunal de que se recorre”.

Como resulta do despacho do relator referido em 1.2.3., supra, prefigura-se a questão prévia da admissibilidade do recurso relativamente à segunda questão.

2.1. O artigo 62.º da LJP tem a seguinte redação:

Artigo 62.º
Recursos

1 – As decisões proferidas nos processos cujo valor exceda metade do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância podem ser impugnadas por meio de recurso a interpor para a secção competente do tribunal de comarca em que esteja sediado o julgado de paz.

2 – O recurso tem efeito meramente devolutivo.


Por sua vez, o artigo 63.º da LJP prevê o seguinte:

Artigo 63.º
Direito subsidiário

É subsidiariamente aplicável, no que não seja incompatível com a presente lei e no respeito pelos princípios gerais do processo nos julgados de paz, o disposto no Código de Processo Civil, com exceção das normas respeitantes ao compromisso arbitral, bem como à reconvenção, à réplica e aos articulados supervenientes.

Por fim, o artigo 629.º, n.º 1, do CPC estabelece:

Artigo 629.º
Decisões que admitem recurso

1 – O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa. [...[

Como se afigura evidente, os critérios dos artigos 62.º da LJP e do artigo 629.º, n.º 1, do CPC são alternativos entre si, ou seja, para decidir acerca da recorribilidade de uma decisão do tribunal de comarca, o Tribunal da Relação aplicará o artigo 62.º da LJP (concluindo que nunca há lugar a recurso) ou o artigo 629.º do CPC (concluindo que há lugar a recurso ou não, conforme se verifiquem ou não os requisitos da alçada e da sucumbência).

Foi precisamente essa a conclusão do acórdão recorrido, que, ao aderir aos fundamentos da decisão singular do Senhor Juiz Desembargador relator conclui, sem qualquer ambiguidade, que “[…] mesmo que se admitisse – arguendo – que o recorrente pretende controverter a constitucionalidade da norma do art. 629.º do CPC, com o sentido de o valor da ação ser o único critério relevante para a recorribilidade de uma dada decisão, sempre seria de continuar a concluir pela inadmissibilidade do recurso, dado que tal norma é meramente hipotética ou virtual, não consubstanciando de modo algum a ratio decidendi na decisão recorrida […]”. É certo que, no segmento final do acórdão recorrido, se pode ler que “[…] a admissibilidade de recurso está condicionada, através de limites objetivos fixados na lei, derivados, nomeadamente, da natureza dos interesses envolvidos, da menor relevância das causas ou da repercussão económica para a parte vencida (cfr. art. 629.º/1 do CPC) […]”, mas trata-se, aqui, já de um obiter dictum, em que o tribunal recorrido afirma, em termos gerais, que a lei pode estabelecer a irrecorribilidade em função de certos critérios, dando como exemplo o artigo 629.º, n.º 1, do CPC, sem que este tenha constituído critério normativo da decisão concreta, como – insiste-se – foi expressamente afastado. Como se faz notar no despacho do relator transcrito em 1.2.3., supra, “[o] que se poderá dizer é que, eventualmente, caso o recurso venha a ser procedente relativamente à norma do artigo 62.º, n.º 1, da [LJP], o tribunal recorrido, quando proferir nova decisão nos termos do artigo 80.º, n.º 2, da LTC, poderá vir a aplicar o disposto no artigo 629.º, n.º 1, do CPC. Porém, não o fez na decisão recorrida”. Efetivamente, só se, por via de uma eventual procedência do presente recurso de constitucionalidade, o tribunal recorrido se visse vinculado a proferir nova decisão sem aplicar o disposto no artigo 62.º, n.º 1, da LJP é que poderia, então, equacionar a aplicabilidade do disposto no artigo 629.º, n.º 1, do CPC, por remissão do artigo 63.º da LJP.

Tanto basta para concluir que, relativamente à segunda questão de inconstitucionalidade referida em 2., supra, se mostra inútil o conhecimento do objeto do recurso, uma vez que uma decisão de procedência não teria como consequência a modificação da decisão recorrida, visto que esta não aplicou a norma enunciada pelo recorrente.

Consequentemente, não se tomará conhecimento do objeto do recurso relativamente a essa questão."

[MTS]


Jurisprudência 2023 (156)


Acção judicial;
ofensa do direito ao bom nome

1. O sumário de RP 29/6/2023 (21209/20.5T8PRT.P1) é o seguinte:

I - A ofensa do direito à honra e ao crédito pode ser praticada nos articulados de uma acção judicial e não é o simples facto de isso constituir o exercício do direito de acesso à justiça que exclui, sem mais, a ilicitude da ofensa.

II - Todavia, o contexto da acção pode permitir concluir que determinadas afirmações não podem ser qualificadas como ofensivas e ilícitas.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O autor pretende através da presente acção obter da ré e da interveniente principal uma indemnização pelos danos que diz ter sofrido em consequência das ofensas ao seu direito ao crédito e ao bom nome perpetradas por aqueles nos articuladas de duas acções judiciais.

A regra básica de distribuição dos riscos e que constitui um dos princípios básicos da responsabilidade traduz-se na máxima casum sensit dominus. A imputação delitual dos danos a outrem pressupõe a lesão de direitos subjectivos, de posições jurídicas que mereçam ser protegidas de qualquer agressão.

Só porque ocorreu um dano e ele resultou de uma actuação voluntária do agente não se pode concluir de forma automática pela responsabilidade do agente pelo ressarcimento dos danos. Fora dos casos excepcionais em que o próprio legislador responsabiliza o agente por factos lícitos, para haver responsabilidade é necessário, desde logo, haver um acto ilícito.

A ilicitude pode resultar da violação de direitos subjectivos ou normas legais de protecção ou da violação de deveres de prestação de origem contratual.

Nos termos do artigo 483.º do Código Civil, “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”. Ao definir o âmbito da responsabilidade civil, este preceito distingue duas modalidades básicas de ilicitude: a violação de um direito de outrem e a violação de qualquer disposição legal destinada à protecção de interesses alheios.

No primeiro caso, a ilicitude advém da ofensa perpetrada a um determinado bem jurídico que a lei protege mediante a qualificação desse interesse como um verdadeiro direito da pessoa. No outro, a ilicitude provém de uma actuação desconforme com a regra de conduta que a lei impõe como forma de tutela de interesses de outrem. Ao lado dessas duas modalidades básicas de ilicitude para efeitos de responsabilidade civil, encontram-se várias outras previsões específicas de actos ilícitos.

Uma delas é o artigo 484.º do Código Civil, segundo o qual quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom-nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, responde pelos danos causados. Aqui a ilicitude traduz-se na ofensa ao crédito ou ao bom-nome de uma pessoa singular ou colectiva, através da divulgação de factos susceptíveis de os prejudicar.

Este preceito é a concretização dos meios de tutela dos direitos de personalidade, consagrados no n.º 2 artigo 70.º. Segundo este preceito, a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral, sendo que a pessoa ameaçada ou ofendida, independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida.

Tal preceito visa cumprir o estabelecido no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, o qual reconhece a todos, entre outros direitos pessoais, o direito ao bom nome e à reputação, como expressão directa do princípio da dignidade humana. Este direito fundamental tem por objecto o tipo de representação que os outros têm sobre uma pessoa, abrangendo todos os aspectos relativos a uma projecção social positiva e à consideração daí resultante no seio da sociedade. [...]

A ofensa ao crédito da pessoa ocorre quando se atinge, diminui ou coloca em causa a confiança dos outros na capacidade ou na vontade de uma pessoa para satisfazer as suas obrigações, a crença dos outros em que a pessoa não faltará aos seus compromissos, a imagem pública quanto à sua capacidade ou vontade de honrar e satisfazer os seus compromissos de natureza económica, a projecção social das aptidões e capacidades económicas dos autores (apud Capelo de Sousa, in O Direito Geral de Personalidade, Coimbra, 1995, pág. 304 e Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª edição, página 549). [...]

Não há, contudo, violação do direito ao crédito de alguém sem a publicitação do acto que pode afectar esse direito, sem se tornar pública a imputação a alguém de uma actuação que possa atingir, diminuir ou colocar em causa a confiança dos outros na capacidade ou na vontade da pessoa para satisfazer as suas obrigações.

Para haver ilicitude, consubstanciada numa violação injusta do direito ao crédito, é necessário que o agente tenha tornado pública a imputação da actuação que pode importar a lesão do direito, tenha transmitido essa imputação a terceiros levando-os a crer na imputação e a formarem uma convicção sobre a veracidade da imputação e a actuarem em conformidade com isso.

Já o bom nome de uma pessoa é ofendido quando se prejudica, diminui ou coloca em crise o conceito favorável que a pessoa tem na comunidade, o reconhecimento público da imagem positiva que ela logrou obter ou construir na comunidade com que se relaciona e onde é conhecida, o seu prestígio ou reputação. [...]

No caso dá-se a circunstância de as afirmações alegadamente ofensivas do direito ao crédito e ao bom nome terem sido feitas nos articulados de acções instauradas pelo aqui autor contra a aqui ré e a interveniente principal. Sabendo-se que a ilicitude é excluída quando há consentimento do lesado ou a actuação do agente corresponde ao exercício de um direito legítimo ou ao cumprimento de um dever, coloca-se a questão de saber como se relacionam o direito de acesso à justiça e à defesa e o direito ao bom nome e ao crédito.

O direito de acesso à justiça, tal como o direito à honra e à consideração pessoal, é um direito constitucionalmente garantido, dotado da tutela que é própria dos direitos fundamentais. Essa circunstância impõe algum cuidado na responsabilização da parte que toma a iniciativa do processo pelas consequências da sua instauração ou daquela que confrontada com um processo se vê obrigada a apresentar a sua defesa. Designadamente, não pode nunca permitir que da simples perda da demanda se conclua pela ilegitimidade da iniciativa processual ou que do simples decaimento da defesa se conclua pela ilicitude dos factos alegados como meio de defesa, e se retire o dever de indemnizar a parte contrária dos prejuízos sofridos em consequência da demanda.

Sucede, porém, que esse direito não é, como não são outros de maior relevo, irrestrito ou insusceptível de adequação prática e, portanto, não pode servir nunca para legitimar toda e qualquer postura processual. Seria inconcebível que o processo, enquanto conjunto de regras instrumentais destinadas a permitir a aplicação do direito substantivo ao caso concreto e a realização da Justiça, pudesse afinal permitir a violação impune de direitos materialmente consagrados. Se o processo serve, por exemplo, para que uma pessoa ofendida nos seus direitos de personalidade possa obter o ressarcimento dos danos que essa violação lhe causou, evidentemente que não pode servir para acobertar nova violação desses direitos no decurso do processo e através do processo e isentar de responsabilidade o autor do novo acto ilícito.

direito de acção, nomeadamente na acepção de direito de defesa é um direito instrumental, no sentido de que não consubstancia em si mesmo um direito subjectivo material, mas é somente o mecanismo através do qual se obtém a tutela dos direitos substantivos. Esse direito não compreende nem exige no e para o seu exercício qualquer carta branca para se poder dizer ou fazer tudo no processo, designadamente violar legítimos direitos de outrem.

A Constituição de República Portuguesa consagra no seu artigo 20.º o direito de acesso aos tribunais, dizendo que a todo o direito corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente. O mesmo consagra o legislador ordinário no artigo 2.º do Código de Processo Civil. Em ambos os casos a consagração é irrestrita, isto é, não exceptua as violações de direitos perpetradas no âmbito de um processo judicial, o que significa, precisamente com base nesses preceitos, que também a pessoa que viu os seus direitos violados no âmbito de um processo goza da faculdade de lançar mão dos mecanismos judiciais que tenham por objecto reconhecer os seus direitos em juízo, prevenir ou reparar a violação deles, realizá-los coercivamente.

Se mais não fosse alcançar-se-ia a mesma solução com recurso ao princípio da boa fé e ao instituto do abuso de direito, presente em todo o sistema jurídico e, como tal, também, no sistema de regras que é o caminho para a realização dos direitos materiais, isto é, o processo. O processo visa antes de mais a protecção, a defesa, a realização, o ressarcimento da violação dos direitos legítimos, dos direitos merecedores - quanto ao conteúdo ou ao modo de exercício - dessa tutela e, por isso, tem de ser ele mesmo inócuo, no sentido de que tal como deve ser garantia da efectiva tutela a que tende, não pode ser ele mesmo fonte de violação desses direitos. O contrário seria uma afronta flagrante do princípio da boa fé que nada justifica e, sobretudo, uma violação das próprias regras de direito material enformadas por aquele.

Assim, em regra, uma actuação processual que importe a violação de direitos materiais legítimos não pode deixar de constituir um acto recusado pela ordem jurídica, um acto ilícito quae tal. Por isso, desde que essa actuação corresponda a um acto culposo, não pode deixar de implicar responsabilidade civil pelos danos que forem consequência dessa actuação.

Havendo conflito, real ou aparente, entre direitos ou interesses igualmente protegidos pela constituição, a divulgação de factos desonrosos deve revelar-se adequada e necessária à salvaguarda do direito ao abrigo do qual a divulgação é feita, sob pena de a divulgação ser ilícita.

Lida e relida a matéria de facto não encontramos na mesma absolutamente nada que possa constituir uma ofensa ao crédito ou ao bom nome do autor.

Não há, desde logo, na matéria de facto nenhum facto que seja susceptível de diminuir ou colocar em causa a confiança dos outros na capacidade ou na vontade do autor para satisfazer as suas obrigações, a crença dos outros em que ele não faltará aos seus compromissos.

O facto de ter sido afirmado que numa determinada altura e num determinado contexto ele não teria meios de subsistência próprios e beneficiava da ajuda económica da ré é absolutamente anódino a esse respeito porque não é por uma pessoa num certo momento passar por uma situação dessas, a ser verdadeira, que o seu crédito é posto em causa.

Acresce que a situação é descrita como facto passado e não é objecto de divulgação pública porque as afirmações estão circunscritas ao contexto de uma acção judicial que sendo embora pública não é frequentada por um conjunto de pessoas suficiente para que a voz do processo se transforme numa voz pública ou conhecida do público.

Também o facto de se afirmar que o autor não desenvolvia actividade profissional no âmbito de uma empresa e que retirava benefícios desta sem contrapartida de trabalho ou actividade de relevo não é de modo algum algo que diminua ou coloque em crise o conceito favorável que o autor pudesse ter na comunidade, o reconhecimento público da imagem positiva que ele tenha logrado obter ou construir na comunidade com que se relaciona e onde é conhecido, o seu prestígio ou reputação.

Desde logo porque essa reputação é alcançada através da intervenção que ele alcança no espaço público e esta nada tem a ver com a circunstância de ele o fazer enquanto sócio, trabalhador ou colaborador de uma sociedade ou a qualquer outro título e por isso as afirmações feitas nos articulados das acções não têm qualquer capacidade de fazer reverter essa reputação.

Depois porque o contexto da acção não é um contexto de espaço público capaz de levar as afirmações nela feitas para o domínio público de modo a que as mesmas sejam susceptíveis de influenciar a opinião dos outros.

Acresce que as acções são notoriamente o espaço de discussão da relação pessoal entre o autor AA e a ré BB, aspecto que é notório para qualquer pessoa que com elas contacte, a qual apreende e compreende de imediato os excessos das afirmações ali feitas e que as mesmas não são para levar à letra por estarem influenciadas e perturbadas pelos sentimentos pessoais e o modo como cada um deles reagiu à ruptura da relação pessoal.

Em conclusão, a nosso ver, os factos provados relativos ao comportamento da ré são insuficientes para lhe imputar a prática de um facto ilícito, devendo, ao invés, concluir-se que nas concretas circunstâncias do caso se deve considerar excluída a ilicitude do comportamento da ré."

[MTS]

22/04/2024

Jurisprudência 2023 (155)


Recurso de revisão;
documento novo


1. O sumário de STJ 11/7/2023 (20348/15.9T8LSB-D.P1.S1) é o seguinte:

I – No recurso de revisão interposto com fundamento na alínea c) do artigo 696.º do CPC, a jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça considera que a apresentação de documento só será admissível, quando: (i) o documento, por si só, e sem apelo a demais elementos probatórios, seja capaz de destruir o juízo probatório realizado em sede da decisão revidenda e imponha uma decisão mais favorável ao recorrente (requisito da suficiência); (ii) e quando o recorrente não tenha podido fazer uso do documento por desconhecimento da sua existência ou pela sua inexistência (requisito da novidade); iii) o documento deve visar a demonstração ou a impugnação de factos alegados pelas partes ou adquiridos para o processo que tenham sido essenciais para a decisão de mérito colocada em crise, não podendo em caso algum visar a prova de factos novos (requisito da pré-alegação).

II - Um documento relativo a um processo administrativo de apoio judiciário, que podia ter sido junto ao processo principal, para demonstrar que à data da proposição desta ação ainda não tinha decorrido o prazo de prescrição do direito, não reúne os requisitos da novidade, da suficiência e da pré-alegação para servir de base a um recurso extraordinário de revisão, ao abrigo da al. c) do artigo 696.º do CPC.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"8. Antes de mais, impõe-se caraterizar brevemente os autos principais.

Estes dizem respeito a uma ação de responsabilidade civil proposta pelo agora autor contra os sócios da sociedade B..., Lda., pedindo uma indemnização pelos danos causados pela decisão de destituição do cargo de gerente, que lhe foi comunicada em 13-05-2003.

Por sentença proferida em 08-03-2017, foi a ação considerada improcedente, com fundamento na prescrição do direito invocado pelo Recorrente, ou seja, três anos a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos – nº 1 do artigo 498º do Código Civil.

Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 28.11.2017, foi a sentença confirmada.

9. Nas conclusões do recurso de revista no processo de revisão, o autor-recorrente invoca, para além do documento do processo administrativo de apoio judiciário, que, na sua ótica, permite interromper o prazo de prescrição, quer se considere ter este prazo a duração de três anos, quer se considere ter a duração de 20 anos, que não prescinde de entender que o prazo de prescrição dos autos é de 20 anos, por estarmos perante um caso de responsabilidade contratual. Ora, desde já se tem de constatar que este Supremo Tribunal não tem de se pronunciar sobre a natureza jurídica da responsabilidade civil invocada nos autos, nem sobre a duração do prazo de prescrição. No processo de revisão não pode ser re-discutida a questão de direito debatida nos autos principais, mas apenas verificar se está ou não preenchido algum dos fundamentos taxativos admitidos pela lei para justificar a admissibilidade excecional do recurso de revisão (artigo 696.º do CPC), que não se pode transformar num recurso ordinário.

10. Assim, o objeto do recurso de revisão interposto pelo autor AA traduz-se em saber se o documento por si apresentado reúne os requisitos exigidos pelo artigo 696.º, al. c), do CPC.

O Tribunal da Relação, por acórdão datado de 22-11-2022, decidiu indeferir liminarmente este recurso de revisão, por considerar, em suma, que, por referência ao documento junto pelo recorrente, não se mostram verificados os requisitos da novidade e da suficiência.

Quid iuris?

Este documento integra várias comunicações que o CDLOA fez, ao longo do tempo, ao recorrente, bem como cartas e requerimentos feitos pelo autor ao Conselho de Deontologia, pelo que apesar de se poder considerar que, na íntegra, ele não era do conhecimento do recorrente, resulta da análise do processo que o recorrente era conhecedor das comunicações que sucessivamente lhe iam sendo feitas, bem como das missivas e requerimentos que remetia ao referido processo. Ademais, sempre esteve na sua disponibilidade conhecê-lo na íntegra, pois o processo de nomeação da Ordem dos Advogados existe desde 2010.

De salientar, ainda, que o apenso B dos autos principais respeita a recurso de revisão precedente do presente, no qual o documento apresentado corresponde a parte do documento que agora apresenta na totalidade (cfr. apenso B do processo físico).

Ademais, considerando o teor da decisão do acórdão cuja revisão se pretende, a ratio decidendi desse acórdão prende-se com a prescrição do direito invocado pelo Recorrente, o qual, nos termos do artigo 498.º, n.º 1, do Código Civil, é de 3 anos a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos. E considerou esse acórdão que o recorrente terá tido conhecimento do direito pelo menos em maio de 2003, pelo que, tendo instaurado a ação em 17-07-2015, já o seu direito se mostrava prescrito.

Este acórdão, proferido pelo Tribunal da Relação nos autos principais, para aferir da prescrição do direito do autor, considerou o pedido de apoio judiciário efetuado pelo autor/recorrente em 12-04-2011, por ter sido esse o único pedido apresentado e alegado pelo autor, ora recorrente.

O autor não invocou naqueles autos, e podia tê-lo feito, nem o pedido de apoio judiciário que agora invoca, nem a ação n.º 1728/06.7..., que terá transitado em julgado em abril de 2014, para deles extrair os efeitos processuais que pretendia (cfr. processo principal do presente apenso).

Logo à data da proposição da ação principal, em 2015, se o autor pretendia beneficiar do disposto no artigo 33.º, n,º 4, da Lei do Apoio Judiciário (LAJ), segundo o qual a ação se considera proposta na data em que for apresentado o pedido de nomeação de patrono, com referência ao pedido de apoio judiciário datado de 2010, que agora junta, devia tal facto ter sido desde logo alegado, por se tratar de um facto pessoal de que o autor tinha conhecimento.

O documento que sustenta este pedido, e que agora foi junto, e bem assim a cópia do pedido de apoio judiciário que lhe deu origem, servem como meio de prova documental de facto que, necessariamente, devia ter sido alegado naquela ocasião, aquando da propositura da ação onde foi proferida a decisão cuja revisão o autor pretende.

O autor devia, igualmente, ter alegado e provado a existência da ação n.º 1728/06.7..., o que também não fez, embora nessa data também tivesse conhecimento desses factos e o seu acesso fosse público.

Para além da ausência de novidade, suficiência e de pré-alegação, também em termos de direito material, considerando o regime da prescrição aplicado nos autos, a pretensão do autor, ainda que fosse atendível e se provassem os factos novos que o autor alega, também não seriam causais para permitir a procedência do pedido do autor, continuando a verificar-se a prescrição do direito que o autor invoca. Ou seja, o direito do autor sempre estaria prescrito, quer se tivesse por referência o pedido de apoio judiciário de 2010, quer o de 2011, em face da data em que o autor teve conhecimento do direito, maio de 2003.

Quanto ao trânsito em julgado da ação n.º 1728/06.7..., que também agora o autor usa como argumento para sustentar a interrupção do prazo de prescrição, este facto não foi invocado na ação cuja revisão se pretende.

O autor, ora recorrente, não poderia, pois, beneficiar do prazo legal de dois meses previsto no artigo 327.º, n.º 3, do Código Civil, pois para além de ter conhecimento do seu direito desde 2003, bem como das pessoas que alegadamente praticaram os atos cuja responsabilidade o autor reclama, a verdade é que autor não alegou nos autos principais os factos atinentes ao proc. n.º 1728/06.7... e que já eram do seu conhecimento. E, para que o autor pudesse beneficiar da sucessão de factos que agora alega, devia tê-los invocado na ação principal, pois deles tinha prévio conhecimento.

11. Assim, deve entender-se que, de acordo com a jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça, o documento agora apresentado não reúne os requisitos para que seja admitido um recurso de revisão extraordinário interposto com fundamento na alínea c) do artigo 696.º do CPC, por três motivos:

1) o documento apresentado não é suscetível de destruir o juízo probatório realizado em sede da decisão revidenda, nem impõe uma decisão mais favorável ao recorrente quanto ao decurso do prazo de prescrição (requisito da suficiência);

2) o documento apresentado não é novo, no sentido exigido pela lei, pois que já podia o recorrente ter feito uso dele no processo principal na medida em que conhecia (ou podia facilmente conhecer) a sua existência (requisito da novidade);

3) o documento apresentado visa obter a prova de factos novos, não discutidos nem alegados no processo principal, e que não se revestem de essencialidade para a decisão de mérito colocada em crise (requisito da pré-alegação).

12. Concluímos, pois, que a pretensão do recorrente deverá improceder em face da ausência de novidade, suficiência e pré-alegação do documento apresentado."

[MTS]

19/04/2024

Bibliografia (1120)


-- Bonifácio Ramos, J. L., Tecnologia e Processo: Desafios e Constrangimentos. Em especial, a Inteligência Artificial, RDC 9 (2024-1), 33

-- Correia de Mendonça, L., José Alberto dos Reis entre Lodovico Mortara e Giuseppe Chiovenda, RDC 9 (2024-1), 11


Bibliografia (Índices de revistas) (235)


RTDPC


-- RTDPC 78 (2024-1)


Jurisprudência 2023 (154)


Litigância de má fé;
duplo grau de jurisdição


1. O sumário de STJ 11/7/2023 (10972/10.1TBVNG.P2.S1) é o seguinte:

I- É insusceptível de ser declarada a ineficácia de justificação notarial de aquisição de propriedade por usucapião se a respectiva actuação processual em juízo é contraditória com a conduta anterior dos autores na acção, vista na sua globalidade como atentatória da tutela da confiança do adquirente por essa via de aquisição, e, portanto, configurada como abusiva, ao abrigo do art. 334º do CCiv., na modalidade de “venire contra factum proprium” positivo (o agente abusador gera a convicção de que não irá praticar certo acto e depois, contra a legítima expectação de conduta, pratica o acto).

II- Não é admissível a revista do segmento decisório do acórdão da Relação que reaprecia e confirma a decisão de condenação em litigância de má fé proferida pela primeira instância, tendo em conta o regime especial de recorribilidade previsto no art. 542º, 3, do CPC para as decisões condenatórias (e não absolutórias) em primeira instância, não podendo, quando se trate de tais decisões, o recurso ultrapassar o patamar de impugnação junto da Relação.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Em ambas as instâncias foram os Autores condenados em litigância de má fé, dando causa ao pagamento de multa de 10 UCs e de indemnização no montante de € 10.000, em aplicação do art. 542º, 1 e 2, do CPC.

A Relação reapreciou a questão da condenação proferida em 1.ª instância em razão das Conclusões CCCLXVIII a CCCCLXXIII inscritas na apelação.

Trata-se de uma decisão autónoma em relação ao objecto da acção, tomada em incidente cujo julgamento e resultado correspondem a um segmento decisório cindível no dispositivo da sentença proferida em 1.ª instância. Enquanto decisão proferida em incidente sem estrutura e natureza de acção, estamos perante decisão interlocutória com incidência processual, recorrível para a 2.ª instância nos termos do art. 644º, 2, e), e, depois, submetida esta segunda decisão ao regime da revista “continuada” do art. 671º, 2, do CPC [Neste sentido, como regra no contexto da tipologia das decisões interlocutórias submetidas em revista por via do art. 671º, 2, do CPC, v. LOPES DO REGO, “Problemas suscitados pelo modelo de revista acolhido no CPC – O regime de acesso ao STJ quanto à impugnação de decisões interlocutórias de natureza processual”, Estudos em Homenagem à Professora Doutora Maria Helena Brito, Volume II, Gestlegal, Coimbra, 2022, págs. 475-476 e 482: “decisões que se pronunciam acerca de incidentes inseridos na causa principal, admitindo-os ou rejeitando-os”; cfr. ainda, na interpretação do art. 671º, 2, do CPC, LUÍS ESPÍRITO SANTO, Recursos civis. O sistema recursório português. Fundamentos, regime e actividade judiciária, CEDIS, Lisboa, 2020, pág. 283. Na jurisprudência do STJ, V. Acs. de 29/6/2017, processo n.º 2487/07.1TBCBR-C.C1.S1, Rel. TOMÉ GOMES, 16/5/2023, processo n.º 113/16.7T8VNC-I.G1-A.S, Rel. RICARDO COSTA, 31/5/2023, processo n.º 65/16.3T8VNC-B.G1-A.S1, Rel. MARIA OLINDA GARCIA, e de 28/6/2023, processo n.º 3080/17.6T8BCL-I.G1.S1, Rel. RICARDO COSTA; in www.dgsi.pt.] – o que, se fosse o caso, não foi cumprido pelos Recorrentes.

No entanto, a este regime geral acrescenta-se o regime especial do art. 542º, 3, do CPC, estatuindo que, «[i]ndependentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admitido recurso, em um grau, da decisão que condene por litigância de má fé».

Estamos perante uma previsão para a recorribilidade da decisão condenatória (e não para decisão absolutória) como litigante de má fé: só pode ser objecto de recurso em um grau – da 1.ª instância para a Relação ou desta para o Supremo (enunciativa, a contrario sensu); em contrapartida dessa restriçãoamplia-se a faculdade recursiva, uma vez que é sempre assegurada a admissibilidade do duplo grau de jurisdição sem dependência da verificação do art. 629º, 1, do CPC. [V. ABRANTES GERALDES, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina Coimbra, 2018, sub art. 629º, págs. 64-65 e nt. 96, ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/LUÍS PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil anotado, Vol. I, Parte geral e processo de declaração, Artigos 1.º a 702.º, Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 542º, pág. 594 (“Ainda que o valor da ação supere a alçada da Relação, a parte que tenha sido penalizada não pode interpor recurso de revista que abarque essa questão, regime que compatibiliza a tutela do visado (carecida, nesta parte, de um duplo grau de jurisdição) com a natureza marginal da questão.”), JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil anotado, Volume 2.º, Artigos 362.º a 626.º, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2021 (reimp.), sub art. 542º, pág. 461 (aparentemente, atendendo à argumentação). Na jurisprudência consolidada do STJ sobre a não admissão do terceiro grau de jurisdição, entre outros, também antes do CPC de 2013, v. os Acs. do STJ de 4/5/2021, processo 2523/19.9T8PRD-E.P1-A.S1, Rel. FÁTIMA GOMES, 19/5/2020, processo n.º 5126/07.7TBSXL.L1.S1, Rel. MARIA OLINDA GARCIA, sendo o aqui Relator 2.º Adjunto (cfr. ponto II. do Sumário, disponível in www.stj.pt), 28/11/2017, processo n.º 2398/11.6TBVLG-A.P1.S1, Rel. HÉLDER ROQUE (cfr. pontos II. e III. do Sumário, disponível in www.stj.pt), 19/10/2017, processo n.º 11262/79.0TVLSB-L.L1.S1, Rel. FERNANDA ISABEL PEREIRA (cfr. ponto IV. do Sumário, disponível in www.stj.pt), 17/11/2015, processo n.º 2443/11.5TJVNF.G1.S1, Rel. SILVA SALAZAR (in www.stj.pt), 26/6/2014, processo n.º 2733/05.6TBAMT.P1.S1, Rel. TÁVORA VÍTOR (cfr. ponto III. do Sumário, disponível in www.stj.pt), 16/1/2014, processo n.º 1279/08.5TBGRD-N.C1-A.S1, Rel. SÉRGIO POÇAS, 29/10/2013, processo n.º 31038/96.0TVLSB.S1, Rel. FERNANDES DO VALE (in www.dgsi.pt), 21/11/2012, processo n.º 3365/04.1TTLSB.L1.S1, Rel. MARIA CLARA SOTTOMAYOR, 12/7/2011, processo n.º 2375/07.1YXLSB.L1.S1, Rel. GABRIEL CATARINO (in www.stj.pt), 27/5/2010, processo n.º 5387/05, Rel. SOUSA LEITE, e de 20/1/2010, processo n.º 45/04.1TTEVR.E1.S1, Rel. VASQUES DINIS; disponíveis, os sem local de proveniência, in www.dgsi.pt.] [Já não é assim se a decisão de 1.ª instância for absolutória e a decisão de 2.ª instância for condenatória: v. Ac. do STJ de 15/2/2022, processo n.º 1246/20.0T8STB.E1.S1, Rel. MARIA JOÃO TOMÉ, in www.dgsi.pt (“Admite-se assim o recurso [de] revista no caso de a Recorrente haver sido condenada por litigância de má fé apenas pelo TR, uma vez que o Tribunal de 1.ª Instância tinha julgado improcedente este pedido de condenação (…).”: ponto I. do Sumário); na doutrina, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Litigância de má-fé, abuso do direito de ação e culpa “in agendo”, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, pág. 68 (não assim no caso de “não-condenação, apesar de pedida”).] 

Tal significa que: (i) se a condenação provier da 1.ª instância, o recurso (e a garantia do duplo grau de jurisdição) é sempre admissível para a Relação sem dependência do art. 629º, 1 (seguindo o art. 644º, 2, e), CPC); (ii) se a condenação for decretada pela primeira vez pela Relação, admite-se recurso para o STJ, independentemente ainda do valor da condenação em relação aos critérios do art. 629º, 1, do CPC, assim como sem dependência do regime do art. 673º para as decisões interlocutórias “novas” (o que se encontra devidamente salvaguardado na respectiva al. b)); (iii) se a condenação for proferida em primeira mão pela 1.ª instância e reapreciada em recurso pela Relação, não é admitida a revista, seja qual for a decisão em segunda mão pela 2.ª instância (sem prejuízo de, estando aqui presente uma irrecorribilidade legal por «motivo estranho à alçada do tribunal», se poder ponderar a aplicação do art. 629º, 2, d), do CPC).

Assim sendo, tendo os Autores sido condenados como litigantes de má fé em 1.ª instância e tendo essa condenação sido confirmada pela Relação, encontra-se esgotada, uma vez não convocado qualquer regime de revista extraordinária, a possibilidade de tal questão ser objecto de revista, independentemente da sorte e resultado da impugnação (nos outros segmentos) do acórdão recorrido onde foi reapreciada e confirmada a condenação de 1.ª instância, não podendo aqui ser conhecido tal segmento decisório, correspondente à Conclusão 75. da revista."

[MTS]

18/04/2024

Jurisprudência 2023 (153)


Litigância de má fé;
falta de fundamentação; alteração da verdade


I. O sumário de RE 14/9/2023 (20469/19.9T8SNT.E1) é o seguinte:

1. De acordo com o disposto no artigo 639.º, n.º 3, do CPC, a rejeição, total ou parcial, do conhecimento do recurso depende da reação posterior do recorrente em relação ao convite ao aperfeiçoamento, que tanto pode traduzir-se em pura inércia, como na apresentação de nova peça processual sobre a qual, depois da eventual resposta do recorrido, incidirá a análise do Relator, a fim de verificar se os vícios apontados foram ou não corrigidos.

2. Por razões de justiça material, celeridade, eficácia e de prevalência da justiça material sobre a justiça formal, a rejeição do recurso após ter sido aceite o convite ao aperfeiçoamento das conclusões do recurso deve pautar-se por critérios de razoabilidade e parcimónia devendo ser utilizada, tão só, quando não for de todo possível, ou for muito difícil, determinar as questões submetidas à apreciação do tribunal superior ou ainda quando a síntese ordenada se não faça de todo.

3. Ocorre litigância de má-fé quando a parte deduz pedido reconvencional omitindo e alterando factos e, consequentemente, deduzindo uma pretensão cuja falta de fundamento não podia razoavelmente ignorar, visando, dessa forma, que dessa alegação sejam extraídas consequências jurídicas em termos de condenação da Autora numa indemnização, enquadrando-se essa situação na previsão do n.º 2 do artigo 542.º, alíneas a) e b), do CPC.


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A sentença condenou os Réus como litigantes de má-fé, com a seguinte fundamentação:

«Cotejada a decisão de facto acima exposta, verifica-se que a versão apresentada pelos réus não encontrou qualquer conforto na prova produzida, defluindo dela manifestamente que: (i) o 1.º réu não permitiu a entrada do legal representante da autora na obra, o que afasta a tese do abandono e (ii) as partes acordaram em dar sem efeito a cláusula que continha a sanção pelo atraso na execução da obra - cfr pontos 61) e 64) dos factos provados.

Por outro lado, tratam-se de factos pessoais dos réus, dos quais os mesmos não podiam deixar de ter conhecimento, uma vez que foram praticados e presenciados pelos próprios.

Desta feita, a conduta processual dos réus acima descrita consubstancia a previsão legal da norma contida no artigo 542.º n.º 2 al. a) e b) do C.P.C., porquanto os mesmos deduziram pretensão cuja falta de fundamento não deviam ignorar, alterando a verdade dos factos.

Diga-se, ainda, que a condenação da parte como litigante de má-fé não depende exclusivamente de uma conduta processual dolosa, bastando para o efeito a demonstração de que a parte estava obrigada a ter consciência dos factos em causa – conforme sucede manifestamente nos presentes autos. (…)

Face ao exposto e ao abrigo do disposto nos artigos 542.º, n.ºs 1 e 2, al.s. a) e b) do C.P.C. e 27.º, n.º 3 do Regulamento das Custas Processuais, deverão os réus ser considerados litigantes de má-fé, devendo, em consequência ficar obrigado ao pagamento de uma multa no valor de 20 (vinte) UC, o que perfaz a quantia de 2.040,00€ (dois mil e quarenta euros), atendendo ao valor dos bens jurídicos em causa e ao grau de ilicitude e culpa da conduta em censura.»

Na Conclusão i), alegam os recorrentes, em desacordo com a sentença, que não litigam de má-fé, «(…) pois não deduzem pretensão cuja falta de fundamento ignoram, nem fazem do processo um uso anormal e abusivo, como decorre do que se deixou dito supra quanto ao contrato de empreitada assinado pelo R. marido e alteração unilateral do mesmo pela A. sem qualquer consentimento ou acordo do R. e o facto de ele não ter junto a cópia do contrato que tinha por não a encontrar não deve contribuir para que daí se retire a conclusão de que está a ocultar factos ao processo, já que, como se referiu supra ele reiterou que o contrato assinado não estava rasurado, resultando das regras da experiência comum que ninguém assina um contrato rasurado sem que ressalve tal facto.»

Vejamos, então, se lhes assiste razão.

Na atuação processual estão as partes vinculadas aos deveres de probidade e de cooperação, agindo de boa-fé, com brevidade e eficácia, de forma a alcançar-se a justa composição do litígio (artigos 7.º a 9.º do CPC).

A condenação da parte como litigante de má-fé obedece aos pressupostos legais mencionados no artigo 542.º, n.º 2, alíneas a) a d), do CPC, abrangendo a sanção tanto o dolo como a negligência grave, aí se encontrando contempladas várias situações subsumíveis ao conceito de litigância de má-fé, violadoras dos referidos deveres.

Assim, atua com má-fé material/substancial a parte que, com dolo ou negligência grave, viola conscientemente o dever de verdade, ao deduzir pretensão ou oposição que sabe ou não podia deixar de saber, ser ilegítima, distorce ou deturpa a realidade de si conhecida ou omite factos relevantes, também por si conhecidos, para a decisão; atua com má-fé instrumental a parte que fizer do processo uso manifestamente reprovável, visando um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

Todavia, não corresponde a litigância de má-fé a dedução de pretensão ou oposição em que se decaí por mera fragilidade da prova ou por não lograr-se convencer o tribunal de determinada realidade trazida a julgamento, bem como as situações que resultam de discordâncias na interpretação e aplicação da lei aos factos.

Assim, a proposição de uma ação, a apresentação de uma contestação, a dedução de reconvenção ou a interposição de um recurso, com fundamento jurídico que não se conseguiu demonstrar, não constituiu uma atuação dolosa ou mesmo gravemente negligente da parte, considerando as inúmeras variáveis em confronto, posto que não se apure uma postura da parte conscientemente infundada.

Todavia, a litigância de má-fé não se pode afastar quando a parte deduz pretensão cuja falta de fundamento não podia razoavelmente ignorar, impondo-se-lhe a obrigação de previamente tentar indagar do fundamento alegado. Muito menos quando conscientemente altera a realidade dos factos, alegando-os de forma deturpada ou omitindo alguns dos aspetos revelantes da realidade alegada.

Como se refere no Acórdão do STJ 02-02-2023 (analisando a evolução normativa da previsão sobre a litigância de má-fé):

«Da redacção do referido artº 456º CPCiv anterior à revisão de 95 do Código, para a actual redacção, a expressão “que não devia ignorar” inculca que se passou de um regime de intenção maliciosa ou gravemente negligente (regime de 61 – má fé em sentido psicológico) para um regime que abrange na respectiva previsão a leviandade ou a imprudência manifestas (má fé em sentido ético).

Trata-se assim, no fundo de um regresso à concepção de má fé originária, do Código de Processo Civil de 1939, o qual, na ideia de J. Alberto dos Reis, sancionava a pretensão ou oposição cuja falta de fundamento “o agente não pudesse razoavelmente desconhecer” (assim, Menezes Cordeiro, Litigância de Má Fé e Abuso de Direito de Acção, 2006, pg. 23).»

Nesta linha de análise, refere-se no Acórdão do STJ de 12-04-2023 [Proc. n.º 1915/11.6TBALM-A.L1.S1 (Jorge Arcanjo), em www.dgsi.pt]:

«Por conseguinte, a lei tipifica as situações objectivas de má fé, exigindo-se simultaneamente um elemento subjectivo, já não no sentido psicológico, mas ético-jurídico. Por isso, actua de má fé não apenas a parte que tem consciência da falta de fundamento da pretensão ou oposição, como aquela que, muito embora não tenha tal consciência, deveria ter agido com o dever de cuidado. Acresce que o dever de verdade processual (alínea b)) pressupõe que a parte tem a obrigação de indagar a realidade em que funda a sua pretensão ( dever de pré-indagação).»

No caso, o tribunal a quo reconduziu a situação à previsão normativa do n.º 2, alíneas a) e b) do artigo 542.º, do CPC, que dispõem do seguinte modo:

«2. Diz-se litigante de má-fé que, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa.»

Da análise dos articulados não nos suscita dúvida que os Réus litigam de má-fé por terem, simultaneamente, alterado e omitido parte dos factos relevantes para a boa decisão da causa e, com base nesse comportamento, terem deduzido uma pretensão cuja falta de fundamento sabiam, ou não podiam ignorar, reconduzindo-se tal comportamento processual à situação prevista no normativo acima referido.
No caso, deduzindo reconvencional alegando factos que não correspondem à realidade e omitindo outros que não podiam desconhecer.

Concretizando.

A causa de pedir do pedido reconvencional assenta nos seguintes fundamentos: (i) a Autora incorreu na penalização prevista no contrato por ter excedido o tempo de execução da obra; (ii) a Autora abandonou a obra não eliminando os defeitos; (iii); A conduta da Autora causou aos Réus danos de natureza não patrimonial.

Ora, se em relação aos fundamentos referidos em (i) e (iii), os Réus alegaram factos que vieram a provar-se não corresponder à realidade, mas que, ainda assim, pode tal resultar de dificuldades de prova não se podendo, com segurança, enquadrar a situação numa atuação intencionalmente dolosa ou gravemente negligente da parte, já em relação à factualidade referida em (ii) a questão coloca-se de modo diverso, uma vez que os Réus alegaram o abandono da obra e a não eliminação de defeitos por causa imputável à Autora, omitindo parte da realidade, ou seja, que foi o Reu quem impediu a Autora de entrar na obra a fim de verificar os defeitos (cfr. artigo 53.º da contestação), o que veio a ficar provado (cfr. ponto 64 dos factos provados).

Sublinhe-se que em relação a esta factualidade não se trata de falta ou de dificuldade de prova, mas sim de omissão pura e simples de alegação da factualidade relevante com o gravame de ter sido alegada realidade diversa. Sendo que o impedimento oposto pelo Réu à Autora para esta entrar na obra são factos de natureza pessoal que os Réus não podiam ignorar, nem desconhecer, e muito menos fundamentar o pedido reconvencional com base numa alegação deturpada da realidade.

Ou seja, os Réus não só omitiram factos, como os alteraram, deduzindo uma pretensão cuja falta de fundamento não podiam razoavelmente ignorar, visando, dessa forma, que deles sejam extraídas consequências jurídicas em termos de condenação da Autora numa indemnização, enquadrando-se essa situação, como bem refere a sentença recorrida, na previsão do n.º 2 do artigo 542.º, alíneas a) e b), do CPC.

Nestes termos, nenhuma censura merece a sentença recorrida no concernente à condenação dos Réus como litigantes de má-fé."

[MTS]


17/04/2024

Jurisprudência 2023 (152)


Prova pericial;
admissibilidade; objecto


1. O sumário de RG 14/9/2023 (52/20.7T8PVL-A.G1) é o seguinte:

I - A prova pericial constitui um meio de prova a realizar (a requerimento das parte ou oficiosamente) quando, para o apuramento de um facto, se torne necessário recorrer ao conhecimento especial (técnico, científico ou artístico) de outrem, o qual assume a função de perito e irá pronunciar-se sobre a questão (ou questões) de facto solicitada, percepcionando-o e valorando-o em razão daqueles conhecimentos especiais, para depois expor das suas observações e das suas impressões sobre os factos presenciados, e retirando conclusões objetivas dos factos observados e daqueles que se lhes ofereçam como existentes, sendo que, deste forma, concorre, positiva ou negativamente, para que o Tribunal forme a sua convicção sobre o facto (ou factos) em causa, atento o que julgador não detém esses conhecimentos especiais.

II - Na determinação do objecto da prova pericial há desde logo que ter presente, como supra já se explicou, que as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos (cfr. art. 341º do C.Civil), e que toda a prova tem incidir sobre concretos pontos de facto que consubstanciam o direito invocado, ou as excepções deduzidas, relembrando-se que os temas da prova constituem apenas uma enunciação genérica das questões controvertidas (cfr. art. 410º do C.P.Civil de 2013), mas há ainda que ter presente o disposto no art. 475º do C.P.Civil de 2013.

III - Neste “quadro” legal, o objecto da prova pericial tem que recair sobre os «factos da causa», os factos essenciais (principais) alegados pelo autor para fundamentar a causa de pedir, pelo réu na contestação para fundamentar as excepções e/ou fundamentar o pedido reconvencional, e pelo Autor para fundamentar as contra-excepções que invoca contra o réu ou fundamentar as excepções que deduziu contra o pedido reconvencional (cfr. arts. 5º/1, 583º, 584º, e 3º/4 do C.P.Civil de 2013), mas também sobre os factos instrumentais e/ou complementares dos factos essenciais alegados [cfr. art. 5º/a) e b) do C.P.Civil de 2013].

IV - Mas na determinação do objecto da prova pericial temos também que considerar o disposto no art. 476º do C.P.Civil de 2013.

V - No que especificamente concerne à apreciação liminar da admissibilidade da prova pericial, como resulta do disposto no nº1 deste art. 476º, o juiz tem que verificar se a mesma se mostra impertinente e/ou dilatória, sendo que, caso conclua num desses sentidos, deverá indeferir a sua realização. O juízo será no sentido da impertinência quando a prova pericial requerida pela parte indica um objecto que não respeita aos factos essenciais da causa (nem a instrumentais ou complementares dos mesmos) ou, numa perspectiva mais ampla, não respeita a factos relevantes e condicionantes para a decisão final, e o juízo será no sentido do carácter dilatório quando, mesmo que o objecto respeite os factos essenciais (e/ou instrumentais ou complementares), o apuramento dos factos em causa não implica a realização de uma perícia já que, para o efeito, não são exigíveis os conhecimentos especiais que este meio de prova pressupõe (cfr. art. 388º do C.Civil), estando, portanto, este carácter dilatório relacionado com a desnecessidade e a inutilidade deste meio de prova para a descoberta da verdade e boa apreciação e decisão da causa (justa composição do litígio), quando a percepção ou apreciação do facto está, completa e seguramente, ao alcance do juiz.

VI - Como impõe o nº2 deste mesmo art. 476º, a determinação (fixação) final do objecto da prova pericial é feita pelo juiz, ao qual competirá, por um lado, excluir todas as questões de facto que, embora propostas pela parte (ou partes), julgue como legalmente inadmissíveis ou irrelevantes e, por outro lado, ampliá-lo com outras questões de factos que julgue necessárias para a descoberta da verdade e cujo apuramento imponha a intervenção de pessoa conhecimentos especiais (diga-se que este juízo de fixação do objecto nada tem que ver com o juízo liminar de admissibilidade ou inadmissibilidade da prova pericial previsto no nº1 do mesmo preceito).


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"[...] a prova pericial constitui um meio de prova a realizar (a requerimento das parte ou oficiosamente) quando, para o apuramento de um facto, se torne necessário recorrer ao conhecimento especial (técnico, científico ou artístico) de outrem, o qual assume a função de perito e irá pronunciar-se sobre a questão (ou questões) de facto solicitada, percepcionando-o e valorando-o em razão daqueles conhecimentos especiais, para depois expor das suas observações e das suas impressões sobre os factos presenciados, e retirando conclusões objetivas dos factos observados e daqueles que se lhes ofereçam como existentes, sendo que, deste forma, concorre, positiva ou negativamente, para que o Tribunal forme a sua convicção sobre o facto (ou factos) em causa, atento o que julgador não detém esses conhecimentos especiais [---]

Na determinação do objecto da prova pericial há desde logo que ter presente, como supra já se explicou, que as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos (cfr. art. 341º do C.Civil), e que toda a prova tem incidir sobre concretos pontos de facto que consubstanciam o direito invocado, ou as excepções deduzidas, relembrando-se que os temas da prova constituem apenas uma enunciação genérica das questões controvertidas (cfr. art. 410º do C.P.Civil de 2013), mas há ainda que ter presente o disposto no art. 475º do C.P.Civil de 2013 (“1 - Ao requerer a perícia, a parte indica logo, sob pena de rejeição, o respetivo objeto, enunciando as questões de facto que pretende ver esclarecidas através da diligência. 2 - A perícia pode reportar-se, quer aos factos articulados pelo requerente, quer aos alegados pela parte contrária”).

Neste “quadro” legal, o objecto da prova pericial tem que recair sobre os «factos da causa», os factos essenciais (principais) alegados pelo autor para fundamentar a causa de pedir, pelo réu na contestação para fundamentar as excepções e/ou fundamentar o pedido reconvencional, e pelo Autor para fundamentar as contra-excepções que invoca contra o réu ou fundamentar as excepções que deduziu contra o pedido reconvencional (cfr. arts. 5º/1, 583º, 584º, e 3º/4 do C.P.Civil de 2013), mas também sobre os factos instrumentais e/ou complementares dos factos essenciais alegados [cfr. art. 5º/a) e b) do C.P.Civil de 2013] [Cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, e Luís Filipe Pires de Sousa, in [Código de Processo Civil Anotado, Vol. I - Parte Geral e Processo de Declaração, Almedina], p. 582.]

Como se decidiu no Ac. desta RG de 05/12/2019 [---], “II. O objecto da perícia é constituído por questões de facto que sejam relevantes para a decisão final de mérito, segundo as várias soluções plausíveis de direito; e, por isso, a prova pericial tanto pode incidir sobre factos essenciais, como sobre factos instrumentais, desde que estes últimos sejam idóneos a conduzir à prova daqueles primeiros”.

Mas na determinação do objecto da prova pericial temos também que considerar o disposto no art. 476º do C.P.Civil de 2013: “1 - Se entender que a diligência não é impertinente nem dilatória, o juiz ouve a parte contrária sobre o objeto proposto, facultando-lhe aderir a este ou propor a sua ampliação ou restrição. 2 - Incumbe ao juiz, no despacho em que ordene a realização da diligência, determinar o respetivo objeto, indeferindo as questões suscitadas pelas partes que considere inadmissíveis ou irrelevantes ou ampliando-o a outras que considere necessárias ao apuramento da verdade”.

Como resulta do teor deste art. 476º, requerida a prova pericial, o juiz deve fazer um juízo liminar sobre a sua pertinência, ao qual se segue o exercício do contraditório, através da audição da parte contrária sobre o objecto proposto. Porém, como explicam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, e Luís Filipe Pires de Sousa [iobra citada, p. 582.], “na prática, é frequente que o juiz relegue a apreciação da pertinência e do carácter dilatório da diligência requerida para o momento subsequente ao exercício do contraditório” mas “a omissão de um juízo liminar expresso sobre a pertinência da perícia, acompanhada da ordem da notificação da parte contrária para se pronunciar, não consubstancia um deferimento tácito, mas apenas o exercício deferido do controlo do pressuposto da norma (STJ 5-3-02)”.

No que especificamente concerne à apreciação liminar da admissibilidade da prova pericial, como resulta do disposto no nº1 deste art. 476º, o juiz tem que verificar se a mesma se mostra impertinente e/ou dilatória, sendo que, caso conclua num desses sentidos, deverá indeferir a sua realização. O juízo será no sentido da impertinência quando a prova pericial requerida pela parte indica um objecto que não respeita aos factos essenciais da causa (nem a instrumentais ou complementares dos mesmos) ou, numa perspectiva mais ampla, não respeita a factos relevantes e condicionantes para a decisão final, e o juízo será no sentido do carácter dilatório quando, mesmo que o objecto respeite os factos essenciais (e/ou instrumentais ou complementares), o apuramento dos factos em causa não implica a realização de uma perícia já que, para o efeito, não são exigíveis os conhecimentos especiais que este meio de prova pressupõe (cfr. art. 388º do C.Civil) [Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, e Luís Filipe Pires de Sousa, in obra citada, p. 582 e Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in [Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, 4ªedição, Coimbra Editora], p. 326.], estando, portanto, este carácter dilatório relacionado com a desnecessidade e a inutilidade deste meio de prova para a descoberta da verdade e boa apreciação e decisão da causa (justa composição do litígio), quando a percepção ou apreciação do facto está, completa e seguramente, ao alcance do juiz.

Assinale-se que o juízo de impertinência não se pode fundar no entendimento de que o facto (ou factos) que se pretende provar (ou contraprovar) através da realização da perícia pode ser provado por outro meio de prova, ou de que a prova pericial não produz prova plena do facto, ou de que a execução da perícia iria fazer prolongar a duração do processo [Cfr. Ac. RG de 21/01/2021, Juiz Desembargador Jorge Teixeira, proc. nº847/20.T8BCL-C.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.]. Como se decidiu no citado Ac. desta RG de 05/12/2019 [---], “V. Para admissão da prova pericial não se exige que a mesma seja o único meio disponível para a demonstração de determinado facto (isto é, que deva ser rejeitada desde que a prova do mesmo possa ser feita por outros meios alternativos); poderá ser apenas a prova preferencial, face ao objecto do litígio”.

Como impõe o nº2 deste mesmo art. 476º, a determinação (fixação) final do objecto da prova pericial é feita pelo juiz, ao qual competirá, por um lado, excluir todas as questões de facto que, embora propostas pela parte (ou partes), julgue como legalmente inadmissíveis ou irrelevantes e, por outro lado, ampliá-lo com outras questões de factos que julgue necessárias para a descoberta da verdade e cujo apuramento imponha a intervenção de pessoa conhecimentos especiais (diga-se que este juízo de fixação do objecto nada tem que ver com o juízo liminar de admissibilidade ou inadmissibilidade da prova pericial previsto no nº1 do mesmo preceito).

Explicam Lebre de Freitas e Isabel Alexandre [In obra citada, p. 326.] que “a restrição há de fundamentar-se na inadmissibilidade (por serem insuscetíveis de prova em geral ou da prova pericial em particular) ou irrelevância (para a solução do caso concreto) de pontos de facto propostos pelo requerente”.

Por último, assinale-se que a prova pericial pode incidir sobre factos passados ou futuros, competindo nestes casos ao perito tentar fazer uma reconstrução dos factos do passado e de estabelecer uma relação de causa-efeito ou, tentar fazer uma projeção dos efeitos futuros dos factos de acordo com a mesma relação causa-efeito, respetivamente [Cfr. o citado Ac. da RL de 15/09/2022, Juiz Desembargador Nelson Borges Carneiro, proc. nº 739/22.0T8PDL-A.L1-2.]."

[MTS]

16/04/2024

Jurisprudência europeia (TJ) (303)


Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Competência judiciária, reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial — Regulamento (UE) n.° 1215/2012 — Artigo 6.°, n.° 1 — Âmbito de aplicação — Contrato celebrado entre um consumidor que tem a nacionalidade de um Estado terceiro e um banco estabelecido num Estado‑Membro — Ação intentada contra este consumidor — Tribunal do último domicílio conhecido do referido consumidor no território de um Estado‑Membro


TJ 11/4/2024 (C‑183/23, Credit Agricole Bank Polska / AB) decidiu o seguinte:

O artigo 6.°, n.° 1, do Regulamento (UE) n.° 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial,

deve ser interpretado no sentido de que:

quando o último domicílio conhecido de um requerido, nacional de um Estado terceiro e que tem a qualidade de consumidor, se situa no território do Estado‑Membro do tribunal chamado a decidir e este não consegue identificar o domicílio atual deste requerido nem dispõe de indícios de prova que lhe permitam concluir que este está efetivamente domiciliado no território de outro Estado‑Membro ou fora do território da União Europeia, a competência para conhecer desse litígio não é determinada pela lei do Estado‑Membro a que pertence esse tribunal, mas sim pelo artigo 18.°, n.° 2 deste regulamento, que atribui competência para conhecer desse litígio a um tribunal em cuja área de jurisdição se encontra o último domicílio conhecido do referido requerido.

 

Jurisprudência 2023 (151)


Recurso; prazo; ampliação;
reapreciação de prova gravada


1. O sumário de RC 27/6/2023 (3892/12.7TBLRA-B.C1) é o seguinte:

I – A extensão em dez dias do prazo para interposição do recurso de apelação, que tenha por objeto a reapreciação de prova gravada, nos termos do disposto no art.º 638.º, n.ºs 1 e 7, do CPCiv., só colhe justificação quando se tratar de uma impugnação séria, não fictícia, assente em prova pessoal gravada.

II – Se a parte recorrente invoca pretender a reapreciação de prova gravada, mas a factualidade impugnada é totalmente irrelevante para a decisão do recurso ou apenas suscetível de prova documental, não é de conceder aquela extensão de prazo, com a consequência da rejeição do recurso, por extemporaneidade.


2. O acórdão tem o seguinte voto de vencido:

"Declaração de voto de vencido (art. 663.º, n.º 1, 2.ª parte do CPC)

Dissenti da decisão proferida maioritariamente por entender que, na situação sub judice, o recurso não devia ter sido rejeitado por extemporaneidade.

É sabido que, ressalvados casos especiais (processos urgentes e os previstos nos arts. 644.º, n.º 2 e 677.º do CPC), o prazo “normal” para a interposição do recurso é de 30 dias contados da notificação da decisão (art. 638.º, n.º 1 do CPC).

Todavia, nos termos do n.º 7 do aludido normativo, a esse prazo acrescem 15 [sic] dias quando o recurso “tiver por objeto a reapreciação da prova gravada”.

A questão que se coloca - e que tem propiciado alguma divergência jurisprudencial - é a de saber se este alargamento do prazo para interposição do recurso está ou não dependente do cumprimento pelo recorrente das exigências de impugnação da matéria de facto constantes do art. 640.º do CPC.

Contrariamente à visão que parece, no caso, ter feito vencimento, seguimos, a este propósito, a orientação – segundo se crê, maioritária - que vai no sentido de que a extensão do prazo em causa depende unicamente da apresentação de alegações em que a impugnação da decisão da matéria de facto seja sustentada, no todo ou em parte, em prova gravada, não ficando dependente da apreciação do modo como foi exercido o ónus de alegação [ - Neste sentido, v.g. acórdãos do STJ de 22.10.2015 (processo 2394/11.3TBVCT.G1.S1); 28.04.2016 (processo 1006/12.2TBPRD.P1.S1); 06.06.2018 (processo 4691/16.2T8LSB.L1.S1); 06.06.2019 (processo 2215/12.0TMLSB-B.L1.S1); 19.06.2019 (processo 3589/15.6T8CSC-A.L1.S1); 24.10.2019 (processo 3150/13.0TBPTM.E1.S1); 21.10.2020 (processo 1779/18.9T8BRG.G1.S1) e de 14.09.2021 (processo 18853/17.1T8PRT.P1.S1), todos disponíveis em www.dgsi.pt.]

Desde logo por razões de hermenêutica e literalidade da norma, visto que o n.º 7 do art. 638.º apenas aponta para “a reapreciação da prova gravada” como objeto do recurso.

Depois pela inserção da norma no âmbito da admissibilidade dos recursos, em momento prévio e independente à apreciação do conteúdo ou teor da impugnação e da observância, ou falta de cumprimento, dos ónus de impugnação a que se reporta o artigo 640.º do CPC, matéria que apenas compete ao tribunal superior.

Como se refere no acórdão do TRL de 27.10.2022 (processo 7241/18.2T8LRS-A.L1.2) “Uma coisa é o prazo de recurso, e seu acréscimo; outra, a existência de condições processuais para a apreciação da impugnação da matéria de facto ou para a sua rejeição”.

O que releva nesta sede é, tão só, perante as alegações apresentadas, verificar se o recorrente pretende a impugnação da matéria de facto sustentada em prova gravada, independentemente da avaliação a efetuar ulteriormente quanto ao cumprimento das exigências constantes do art. 640.º do CPC.

Ora, no caso, deixando de lado essa avaliação, apresenta-se inequívoco que a recorrente (insolvente) pretende impugnar factos cuja prova é sustentada em prova testemunhal que foi objeto de gravação.

Foi assim designadamente quando concluiu:

- “A douta sentença proferida nos presentes autos e da qual pelo presente se recorre não considerou como provados, factos que resultam quer da prova testemunhal (…), produzida nos presentes autos” (conclusão A),

- “com relevo para a boa decisão da causa e porque resulta da prova (…) testemunhal produzida nos presente autos, relativamente aos trabalhadores que a seguir se identificam, devem ser adicionados os seguintes factos à matéria de facto assente, o que se requer a V/ Exªs: (….)” (conclusão B),

face à prova (…) testemunhal produzida nos presentes autos, resultam provados os seguintes factos que se requer sejam adicionados à matéria de acto assente (…)” (conclusão F)

A prova documental e testemunhal produzida nos presentes autos leva necessariamente à total procedência da impugnação dos créditos dos trabalhadores” (conclusão I).

Ora, no caso, deixando de lado essa avaliação, não sobram dúvidas em como a recorrente (insolvente) pretende impugnar factos cuja prova é sustentada em prova testemunhal que foi objeto de gravação (sessão de julgamento de 06.05.2022, sendo que nas demais apenas foram prestadas declarações de parte).

Entendo, como tal, que o recurso devia ter sido admitido e apreciadas as questões nele colocadas, no sentido, em curta síntese:

i) a impugnação da matéria de facto (com a sua rejeição por não terem sido cumpridos os ónus a que se refere o art. 640.º do CPC),

ii) a nulidade da sentença (com improcedência, por a eventual omissão de diligências probatórias prévias não implicar a nulidade da sentença)

e

iii) o erro de julgamento (com a sua procedência, na exata medida em que não se descortina em como a impugnação dos créditos efetuada pela insolvente relativamente a alguns dos trabalhadores - e não a todos consubstancie, sem fundamentação acrescida, abuso do direito (até porque quanto aos demais trabalhadores podem existir fundamentos que justifiquem esse posicionamento).

Paulo Correia"